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terça-feira, outubro 25, 2016

RESENHA SOBRE O MEU LIVRO "ENIGMA - NOEMAS EM TORNO DO MISTÉRIO DO SER E DO EXISTIR"



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O livrito reflete, como um todo, uma crença muito pessoal: a busca pela verdade e pelo conhecimento, para ser completa, tem de visar o "real-objetivo" e o "real-subjetivo". Por outras palavras, não há conhecimento pleno sem autoconhecimento. Nenhuma demanda pelos factos do mundo e da vida pode dispensar uma outra demanda que lhe é paralela e, sem a qual, aquela não fica completa, nem chega a ser existencialmente útil para o Homem.

Por isso mesmo, o livrito divide-se em duas partes: a primeira titulada "Noemas em verso", exprime sobretudo o "real-subjetivo", isto é, nela procuro dar forma escrita - a forma escrita possível dada a inefabilidade de certos sentimentos - às minhas mais profundas inquietações, aos meus mais profundos desejos, ao meu contínuo assombro perante o mistério do Ser e do Existir, e também à esperança - em suma, às motivações subjetivas que definem o meu modo de ser e estar no mundo, e perante o mundo. Aquilo que emocionalmente me move e determina a orientação da minha vida, entendida como demanda existencial cujo Horizonte é a Verdade.

Trata-se nesta primeira parte, fundamentalmente, de tornar claras para mim próprio as minhas reais motivações existenciais, modelando pela palavra, ou vestindo pela palavra (parece-me a metáfora mais adequada) sentimentos, ânsias e visões internas que se mostram frequentemente de forma turva e difusa, por forma a que se tornem inteligíveis, em primeiro lugar de mim para mim próprio. Daí serem mais "noemas" do que "poemas", pois etimologicamente poesia significa criação (do grego "poiésis"), e mais do que criar, eu acredito que, no que diz respeito ao meu real-subjetivo, à minha interioridade profunda, eu me limito a procurar dar forma escrita a sentimentos, ideias, formas e visões, "noemas" (do grego "noema", ideia, conceito, visão) que se insinuam na minha consciência, que emergem e se revelam de forma confusa, às vezes opaca. Mas que são essenciais, pois possivelmente trazem consigo a marca da sua origem profunda, que é a das profundidades arcaicas da consciência de onde brotam as tendências singulares da personalidade individual, e por conseguinte do destino individual. Logo, constituem vias de real autoconhecimento. Autoconhecimento sempre indireto, que requer sempre interpretação; que requer observação através do espelho das ideias e das palavras, e não de forma imediata, face a face. Mas não é sempre assim? E será que terá de ser sempre assim?

A segunda parte, titulada "Noemas em prosa", constitui globalmente o capítulo dedicado ao real-objetivo. Nele exploro alguns temas do mundo e da vida numa atitude mais impessoal, isto é, mais argumentativa e filosófica, temas como o da Verdade, o Amor, Deus, o Conhecimento e a sua importância na vertente individual mas também social-civilizacional, a Educação em sentido amplo e radical, a Consciência, etc. Mas é claro: tendo sempre como pano de fundo, como retaguarda motivacional, as mesmas motivações, anseios, e desejos subjetivos profundos que assistem à primeira parte. Só que agora a atitude é diferente, visa o exterior, a explicação, a racionalidade pública. Mesmo quando no fundamento da explicação racional, da argumentação, estão crenças subjetivas profundamente enraizadas, crenças existenciais como todas aquelas que definem a minha fé básica no Transcendente - sim, Deus, Consciência ontológica do universo; Sentido, Alma, Lei e inteligência cósmica (Logos), etc. E por aí, fé fundamental no Homem, na sua liberdade, e na possibilidade derradeira da sua realização plena, integral; no limite, admito mesmo uma escatologia da salvação, mesmo que seja a da eternidade realizada mil vezes ao longo da História, em cada homem, a cada geração de homens. Digo-o desassombradamente.

O texto ou "noema em prosa" de maior fôlego e alcance nesta segunda parte é precisamente aquele que tem como horizonte o da realidade última, o fundamento ontológico do real; se quiserem, a escatologia do real - pois não é o conhecimento da origem simultaneamente o conhecimento do fim? Trata-se do artigo "(Con)siderações metafísicas em torno da natureza última da realidade". Para quem é da área da filosofia, em particular da metafísica ou da ontologia, aconselho vivamente a sua leitura, por mais discutíveis que sejam as teses que nele defendo. Em termos muito básicos, o que nele defendo é o seguinte:

1º - É impossível conhecer ou descrever a natureza última da realidade, a "coisa em si", tal como Kant defende, pelo menos do mesmo modo que conhecemos e descrevemos realidades como as árvores, as pessoas e os frutos, pois só podemos conhecer e definir aquilo que podemos relacionar com outras ideias e conceitos relativos; só podemos conhecer de forma relativa, e a realidade última, sendo a última das realidades e portanto a mais abrangente possível, não pode ser descrita ou definida por nada que lhe seja exterior, do mesmo modo que não se pode descrever o Ser com outro predicado qualquer fora do Ser, mas apenas dizendo que O SER É.

2º - Sabemos que a realidade última, a "coisa em si", seja lá o que for, É, mas conhecê-la por via de categorias abstratas como a de Absoluto ou Ser não nos chega; conhecer a realidade última de forma mediada, isto é, por conceitos e ideias, não nos interessa EXISTENCIALMENTE FALANDO.

3º - Assim, um conhecimento realmente interessante da "coisa em si" só pode ser, para o ser que existe, uma outra forma de existência. Isto é, para que a realidade última possa ser conhecida plenamente, ela tem de ser "existida". Ela tem de ser experienciada do ponto de vista do "ser-para-si", do mesmo modo que os indivíduos conscientes se experimentam a si próprios e às suas vidas a partir de dentro das suas próprias consciências, como "seres-para-si".

4º - A "coisa em si", tal como cada um de nós próprios para si próprio, constitui um "ser-para-si", isto é, uma subjetividade absoluta. Todas as nossas perceções das coisas, das árvores, das pessoas, dos objetos à nossa volta, são apenas imagens, formas de "ser-para-nós", fenómenos que se oferecem às nossas consciências; mas se nos retirarmos a nós e às nossas consciências, o que resta dessas coisas? Resta o "ser-para-nós", as imagens que delas mantemos nas nossas mentes; mas o que resta fora de nós e das nossas consciências? Resta a "coisa em si", que só pode ser um "ser-para-si" que a nós completamente nos escapa, pois trata-se de uma outra subjetividade que nos é absolutamente alheia, absolutamente outra.

5º - Mas repare-se que a realidade última também está em nós e dentro de nós. A natureza profunda das nossas mentes e consciências é também ela constituída dessa natureza última; por conseguinte, a "coisa em si" que é ser-para-si reside também enraizada no mais profundo de nós. Dito de outra forma, a Subjetividade Absoluta está profundamente enraizada no fundamento da nossa subjetividade relativa.

6º - Se não podemos apor a nossa consciência relativa sobre a natureza última do mundo no sentido de a conhecermos como conceito, teoria e ideia, será que podemos pelo menos mergulhar nas profundidades da nossa própria consciência no sentido de chegarmos precisamente a TOMAR CONSCIÊNCIA da sua natureza última, isto é, do Absoluto que nela reside, e que está por toda a parte, e fundamenta todo o Real?

7º - Será que a consciência pode chegar a tornar-se plenamente consciente de si própria, ao ponto de em si mesma ser capaz de dissolver a distinção entre sujeito e objeto, tornando-se plena e absolutamente presente para si própria? E não será, em última análise, esse o modo de chegarmos a conhecer simultaneamente a natureza e o sentido últimos do universo e de nós próprios? Não será precisamente nesse lugar que conhecimento e autoconhecimento podem chegar a cruzar-se, nesse infinito profundo da Consciência? E como lá chegar? Não necessariamente pela via estritamente cognitiva-intelectual, mas por vias mais intuitivas que incluam formas de meditação ou contemplação, já previstas, aliás, em várias tradições espirituais e religiosas.

Porque escolho este texto? Porque nele está refletida aquela que é a motivação e o estilo que pautam a minha forma de buscar a verdade: uma busca na qual todo o conhecimento se visa como pretexto para o autoconhecimento; conhecer, e conhecer-me como sou conhecido, para usar as palavras de São Paulo; reconhecer que, para já, estamos limitados a conhecer de forma mediada e confusa, através do espelho das ideias e das palavras, mas que não está fechada a possibilidade de que possamos vir a conhecer face a face, de que possamos vir a conhecer o Sentido que subjaz a todos os sentidos.

Enfim, por tudo isto, faço votos para que adquiram o livrito, quanto mais não seja para que vos desperte e estimule a pensar o impensável, ou a refutar e discutir o que aqui o ali vos parece absurdo e impossível.

A todos um bem-haja,

Ruben David Azevedo

segunda-feira, agosto 15, 2016

Reabilitar a alma como resposta para o "hard problem" da consciência - porque não?



(for english version please click here. This article has also been published in Medium community.)

Considero que a hipótese da existência da alma deve ser tida em conta na resposta ao problema da consciência, ou, mais precisamente, ao chamado “hard problem” da consciência, o problema que diz respeito à natureza e origem da experiência subjetiva enquanto tal. Dito de outra forma, considero que deve ser ponderada a possibilidade que considero muito plausível de estarem esgotadas todas as tentativas estritamente fisicalistas ou materialistas de dar uma resposta cabal a este problema fundamental, e que o adágio "no brain, never mind" deve efetivamente ser revisto ou pelo menos reinterpretado, porquanto reflita acima de tudo um preconceito filosófico muito comum entre filósofos, neurocientistas e cientistas cognitivos que se têm debruçado sobre o mistério da consciência. Preconceito que é reflexo de um paradigma transversal a várias ciências, mas que não tem propriamente base empírica e científica. Paradigma orientador, que aponta horizontes de resposta, mas que no caso da consciência e do mistério da experiência subjetiva talvez esteja a apontar para o horizonte errado, pois há muito que a investigação estritamente fisicalista, fisiológica, materialista do cérebro se debate com o problema da natureza da consciência sem lhe encontrar uma saída consistente com esse pressuposto orientador. Tal como já escrevi num outro trabalho,

“…por mais rigorosos que sejam os mapas do cérebro, por mais abrangentes e profundos que sejam os tratados que descrevem certos aspetos do seu funcionamento, há uma dimensão da consciência que continua a escapar aos melhores (cientistas e filósofos). Esta dimensão é precisamente o segundo nível do problema identificado por Chalmers, o do “hard problem” da consciência. Porque, admiravelmente, os neurocientistas são capazes de explicar em parte o modo como o nosso cérebro identifica, por exemplo, uma face conhecida na rua, descrevendo os processos neurológicos que lhe estão subjacentes; conseguem, inclusive, descrever com algum sucesso o modo como o cérebro transforma os dados dispersos que penetram pelos sentidos em padrões informacionais reconhecíveis, isto é, o modo como o cérebro, na prática, traduz a informação que vem do mundo (por ex., através da luz), em padrões, imagens mentais, ideias, perceções. Aquilo que eles falham permanentemente em explicar, a “pedra no sapato” da investigação neurocientífica, é o modo como somos capazes de percecionar subjetivamente esses padrões, essas imagens mentais, essas perceções. Dito de outro modo, a questão fundamental é a de saber como é possível a experiência subjetiva, que na prática significa perguntar acerca da natureza da mente e do mental, da sua qualidade (qualia).” (O bosão da consciência, Blog Casa do Ser, § 33)

Talvez esteja na altura, portanto, de uma revolução coperniciana, também no domínio das neurociências, que reabilite outras hipóteses, como a da alma, que possam desbloquear este problema.
Entendo aqui a “alma” num sentido minimalista, isto é, não no sentido de um órgão, substância ou entidade metafísica que substitua o cérebro e as suas incontornáveis funções de processamento cognitivo e sensorial, que hoje é mais do que inquestionável que têm origem nos processos neurológicos; não uma alma no sentido tradicional, isto é, origem do pensamento, da vontade, da inteleção, dos sentimentos, emoções e perceções, mas tão-só a base, digamos, metafísica, onde todos estes fenómenos produzidos pelo cérebro se refletem, ou seja, adquirem o seu caráter subjetivo. Cito de novo o já referido trabalho (Idem, § 21): “O ser consciente é, pois, reflexivo, porque dotado de uma interioridade onde todo o significado ecoa significativamente, graças ao fenómeno da experiência subjetiva; i.e., não se dispersa inutilmente, não cai no vazio nem na indiferença, tal como acontece num supercomputador que, por mais sofisticado, não é sensível à própria informação que produz, não a perceciona subjetivamente, não é capaz de atribuir significado, antes a produz para outrem.”
Não nego, por conseguinte, como não podia negar face à vanguarda da investigação neurocientífica, que o cérebro - provavelmente o mais complexo de todos os sistemas biológicos e não-biológicos conhecidos -, seja de facto a origem de todas as funções neurológicas e cognitivas: intelectuais, emocionais, percetivas, volitivas, não-volitivas, etc. Mas não necessariamente da consciência que sustenta e torna possível a experiência subjetiva.
            Definiria “alma” como uma espécie de “essência senciente”, por natureza contínua, eixo fundamental, núcleo duro da identidade ou “si”, em cuja órbita se constrói o “eu”, que é a identidade sociocultural. O “si” não é o “eu”, pois este último pressupõe um conjunto de dimensões socioculturais e socio-identitárias, que dizem respeito à história e projeto de vida do sujeito (o que chamo de “identidade projecional” – sonhos, aspirações, objetivos de vida, etc.). O “si” é o alicerce, a medula do “eu”, a própria condição de possibilidade de qualquer identidade individual, porquanto seja a base de toda a reflexividade consciente – aquilo que outrora designei por “espetador”, que situado no mais profundo e misterioso reduto da toda a consciência individual, se constitui como retaguarda, consumidor final, observador primeiro e derradeiro dos eventos electroquímicos ou neurológicos do cérebro na sua face mental ou subjetiva - precisamente o factor que faz toda a diferença entre o simples computador, que não é consciente ou sensível aos produtos e padrões informacionais que produz, por não possuir tal “retaguarda”, e o ser consciente, o homem ou o animal, que não só possui dentro da sua caixa craniana o mais complexo e potente computador biológico, mas é consciente e sensível, de um misterioso ponto de vista subjetivo, aos seus produtos de ordem cognitiva, pois é dotado de interioridade.
Espetador fugidio, sem localização definida ou definível, fisicamente falando; natureza misteriosa, “olho do espírito”. Acerca da sua natureza podem elocubrar-se várias teorias, inclusive aquela que aventei na aventura especulativa que constituiu o trabalho anterior já por duas vezes citado (e que não passa disso mesmo, uma aventura especulativa como qualquer outra…).
Fundamento do “eu”, dizia, pois toda esta esfera socio-identitária que constitui o “eu”, sendo por natureza concetual e simbólica, seria insustentável sem a dimensão da interioridade ou subjetividade consciente, que por sua vez seria impossível sem a base ou fundamento de toda a experiência subjetiva, logo de toda a consciência – a dita “alma” ou “essência contínua senciente”, que porventura será independente do cérebro físico, ou situar-se-á num plano ontológico paralelo.
Eis algumas das razões porque defendo que a consciência não pode ser explicada sem o recurso a esta realidade fundamental. Embora a neurociência e as ciências cognitivas estejam perto de explicar os processos neurofisiológicos por via dos quais o cérebro produz perceções - que não são senão imagens e padrões mentais de carácter informacional -, está por resolver o fulcro do problema, que tem que ver com o modo como estas perceções – que na origem não são senão eventos electroquímicos no cérebro – são interpretadas subjetivamente, isto é, adquirem o caráter muito real de eventos mentais percecionáveis de um ponto de vista subjetivo, no contexto de uma interioridade consciente. Como é que um padrão electroquímico despoletado no cérebro de um dado sujeito que, por exemplo, se queima ao colocar as mãos no fogo, pode ser efetivamente sentido como dor para esse mesmo sujeito, de um modo absolutamente único e intransferível? Sim – como explicar que esse padrão originalmente neuroquímico possa adquirir esse caráter mental de “ser-para-alguém”? Este, parece-me, é o fulcro do problema. Sendo verdade que o nosso mundo mental é um fluxo interminável de diferentes perceções, imagens e eventos mentais vários, fruto de uma máquina biológica que evoluiu precisamente para ser capaz de a todo o momento extrair informações acerca do mundo interior e exterior, pensando-o e interpretando-o sensorialmente, é também verdade que existe um denominador comum a todas as perceções: são sempre “nossas”, confundem-se com a identidade do próprio sujeito que as perceciona; quer dizer, a experiência subjetiva não se distingue do próprio sujeito da experiência; um não se entende sem o outro, e, em boa verdade, não existe sem o outro. Como, aliás, o próprio “eu”, ou seja, a identidade social ou sociocultural, não existe fora do sujeito que, subjetivamente, a interpreta e pensa conceptualmente, sendo que a identidade enquanto constructo conceptual e simbólico é simultaneamente uma perceção ou evento mental complexo (a “ideia de si”) e o próprio “eu”, ao qual o sujeito se refere quando fala ou toma consciência de si próprio. Graças, portanto, à experiência subjetiva, a identidade adquire o seu carácter “reflexo”, ou seja, torna-se identidade de e para alguém; torna-se em ideia autorreferencial, porquanto continuamente parte de si para voltar a si – torna-se “eu”, portanto.
É como se a experiência subjetiva ocorresse num estranho e misterioso reduto da mente, onde os padrões informacionais electroquímicos misteriosamente se transmutam em eventos mentais, perceções, sentimentos. É como se, num qualquer “centro” mental ou fisiológico ocorresse uma comunicação, um contacto ou sobreposição total que permite uma continuidade entre realidades de naturezas distintas, um contacto integral, ponto por ponto, como numa plasmagem, entre uma realidade de ordem fisiológica e outra não-fisiológica, em que a informação electroquímica da primeira fosse transferida à segunda numa forma, digamos, imaterial, ou da matéria, seja ela qual for, que constitua o propriamente “mental” ou “consciente”. Recorrendo à terminologia kantiana relativamente à chamada “aperceção transcendental”, seria como se uma “unidade de perceção” contactasse integralmente, ponto por ponto, com uma “unidade de consciência”, numa sobreposição total entre ambas, só isso explicando que uma dada perceção – por ex., a visão de uma árvore à minha frente, a partir da janela – seja percecionada como uma totalidade, isto é, uma visão integrada à qual não falta nenhuma parte da qual eu possa ter diretamente consciência, nas atuais condições de distância, visibilidade, etc. Escreve Kant: “…as diversas representações, que nos são dadas em determinada intuição, não seriam todas representações minhas se não pertencessem na sua totalidade a uma autoconsciência”, isto é, “O pensamento de que estas representações dadas na intuição me pertencem todas equivale a dizer que eu as uno em uma autoconsciência ou pelo menos posso fazê-lo” (KANT, Crítica da Razão Pura, B133-B134, pp. 132-133)
E repare-se que esta questão da “unidade de consciência”, unificadora e integradora dos fluxos electroquímicos do cérebro em totalidades designadas perceções, é tão mais misteriosa quanto as neurociências ainda não foram capazes de determinar, de forma exata e conclusiva, no cérebro como no restante sistema nervoso, nenhum “centro” onde a referida transmutação físico-mental possa ocorrer. Não se conhece nenhum centro fisiológico onde possam convergir os vários fluxos informacionais de caráter neuro-electro-químico que se processam em sectores diferentes do cérebro, de modo a formar uma totalidade, um padrão informacional complexo que possa ser interpretado mentalmente como uma perceção complexa. Pois, como é sabido, a formação de uma perceção complexa envolve o contributo de vários sentidos e processos cognitivos, que ocorrem em “clusters” neuronais situados em pontos diferentes do cérebro. Por exemplo: tenho a perceção muito evidente, coerente e integrada, de que estou neste momento sentado numa cadeira de madeira um pouco dura, a escrever ao computador, em minha casa, sobre uma mesa de madeira com uma textura muito polida. Pela janela do meu lado direito entra a luz do sol; posso ouvir a música de fundo que toca na playlist do meu computador, e os meus dedos a bater nas teclas. Tenho na boca o sabor do café que acabei de beber e cuja chávena se encontra ao meu lado direito, sobre a mesa, e no nariz ainda um pouco do seu cheiro delicioso. Em resumo, é este o ambiente que me rodeia e onde me posso neste momento situar, de forma consistente e integrada - enfim, una, porquanto essa unidade que caracteriza a minha perceção complexa seja o reflexo ou projeção da “unidade de consciência” que me constitui.
Ora, todos os estímulos que constituem esta perceção complexa são processados e transformados em padrões electroquímicos em diferentes setores do cérebro, a saber: os táteis são processados na área somatossensória, localizada no lobo parietal; os auditivos, no córtex auditivo, localizado no lobo temporal; os visuais, no lobo occipital, localizado na parte de trás do cérebro. Não obstante a distância que separa os vários setores, a experiência subjetiva é sempre una, e não fragmentária e parcial. O fluxo de dados percecionais, embora alimentado por correntes de informação sensorial e cognitiva de natureza distinta e com origem em pontos diferentes do cérebro, é misteriosamente unificado por um laço que supera e suprime essa distância; um laço que supera o meramente o local; um laço, digamos, não-local



Mesmo que esse centro físico bem determinado no cérebro existisse, continuaria ainda por explicar o intrigante processo segundo o qual, nesse local em particular, o físico se transformaria em mental, quer dizer, o meramente electroquímico em experiência subjetiva consciente; o como e também o porquê desse local em específico possibilitar essa estranha alquimia que permite a introdução de um conjunto de fenómenos fisiológicos e electroquímicos observáveis e mensuráveis objetivamente, no mundo não observável e não objetivamente mensurável da subjetividade, onde só o sujeito é senhor da sua interioridade. Se, por outro lado, esse centro físico não existe, resta-nos conjeturar, por exemplo, que o cérebro é ele todo, integralmente, um “grande centro”, onde a realidade, digamos, imaterial da consciência (isso a que decidi chamar “alma”) coexiste paralelamente à realidade material, fisiológica do cérebro, talvez mesmo de um modo fundamental, celular ou quântico, permitindo uma imediata apreensão e unificação, a todo o momento, dos vários fluxos de informação sensorial e percetiva processados em setores situados em áreas diferentes do cérebro; ou seja, permitindo que diferentes processos sensoriais e cognitivos se transformem, imediatamente, em perceções complexas cujo caráter essencial é o de serem percecionadas de um ponto de vista subjetivo, de forma unificada e integrada. 


Web/Bibliografia

- O bosão da consciência – uma proposta humildemente audaciosa para resolver o “hard problem” da experiência subjetiva - Blog Casa do Ser, link: http://casadoser.blogspot.pt/2015/07/o-bosao-da-consciencia-uma-proposta.html.


- KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura, trad. de Manuela Santos e Alexandre Morujão, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. 

domingo, julho 17, 2016

Angústia existencial


(Foto: por Filipe Pimentel)


A angústia existencial tem muito que ver com a consciência dolorosa de que se fica sempre aquém do que se pode realizar e ser, do que se pode de mais alto pensar e sentir; a consciência do desperdício da vida, por medo ou comodismo. É a dor de uma alma que se sente capaz de grandes e belos feitos, que sente vocação de imortalidade... e no entanto, se sente limitada e como que condenada a uma circunstância de vida da qual se sente incapaz de se libertar. E tanto maior é a consciência e a dor dessa limitação, quanto maiores são os seus sonhos e aspirações, quanto mais alto é aquilo que pode pensar e sentir. A consciência recorrente deste confronto entre o sonho e a realidade aparentemente intransponível da limitação, entre a pulsão vital do ilimitado e a limitação circunstancial que, de forma angustiada, se julga intransponível, tem de cada vez o sabor de uma pequena morte; tem o sabor amargo do tédio e do absurdo. E este sentimento fere mais por se saber que o tempo é curto, e que se vai morrer.

É isto a angústia.

Como ultrapassar isto? Muitas vezes, fica-se à espera. À espera de um resgate. Espera-se que a libertação venha de fora. E às vezes vem, mas só dura realmente se formos capazes de tomar as rédeas da nossa salvação, se estivermos dispostos a assumir até ao fim, sem medo ou desânimo, covardia ou preguiça, todas as consequências, boas ou menos boas, agradáveis ou dolorosas, das nossas completas escolhas. Escolhas que se tomam integralmente (ou que às vezes nos tomam integralmente), sem olhar para trás. Os germens do medo e do comodismo, da dependência e do desânimo, estão sempre em nós, nunca nos abandonam verdadeiramente, mesmo depois de vencidas as pontuais circunstâncias limitadoras. É que, para além de vencermos as circunstâncias, temos de saber vencer-nos a nós próprios, a todo o momento – e isto é o essencial de toda a sabedoria. Estamos sempre em risco de “cair” numa nova dependência, num novo estado inferior de limitação e pobreza de espírito, frequentemente iludidos de que se tratou de uma escolha real, quando na verdade fomos sim determinados pela nossa fraqueza, cedemos ao encantamento de sereia do fácil e cómodo. Depois da comodidade, vem a angústia – mas então já nos acomodamos, inclusive à própria angústia, que é o pior! Não há nada mais pernicioso para um espírito do que uma angústia acomodada, ou um comodismo angustiado.

A ausência de luta jamais foi sinónimo de paz. A verdadeira paz, que é paz de consciência, exige luta permanente, e contínua vigília e atenção. Luta e vigilância contra as tentações do medo, do fácil e do cómodo, que às vezes se rebuçam em falsas possibilidades de escolha. Luta, que é trabalho, para manter vivos os sonhos, claras as ideias e os propósitos, vigorosas as forças, as faculdades, as virtudes e os afetos. Luta que, bem orientada na direção de uma vocação ou horizonte de vida, se traduz em verdadeira paz - a paz que nasce do movimento (não da mera agitação), que como Einstein dizia recorrendo à analogia do ciclista, é a única forma de manter o equilíbrio na vida. 

segunda-feira, março 14, 2016

Sobre o progresso ético-espiritual do Homem - apontamentos



Progresso ético-espiritual do Homem

Ainda que possa não existir um progresso no sentido cumulativo, uma evolução contínua, o progresso do conhecimento, da ciência, da cultura, da filosofia, da psicologia humana, da arte, permitirão pelo menos que cada geração tenha acesso ao conhecimento e aos instrumentos necessários para se tornar o melhor possível, para desenvolver plenamente as suas potencialidades, virtudes e talentos, sem menosprezar nenhuma dimensão da sua humanidade. A tarefa do “Conhece-te a ti mesmo” não pode ser realizada por outrém, nem o conhecimento acerca de si próprio ser transmitido como um conteúdo já feito e pré-estabelecido; é um trabalho que só pode ser realizado por cada indivíduo, levado a cabo e renovado por cada geração de seres humanos, uma e outra vez, partindo quase do nada.

Neste contexto, não sendo o progresso ético-espiritual de caráter filogenético, mas antes simbólico e cultural, existe na medida em que o progresso do conhecimento, o acesso pleno à cultura de todas as eras – desde logo, e em primeiro lugar, através da educação -, colocam cada geração de seres humanos cada vez melhor posicionada para se cumprir, quer dizer, para desenvolver o melhor das suas virtudes humanas, os seus talentos e potencialidades, os seus horizontes e projetos de vida, cada vez mais próximos das exigências maiores da dignidade humana – assim realmente o desejem!

A primeira das finalidades de qualquer Civilização digna desse nome, deveria ser, aliás, nada menos do que isto: a realização plena da pessoa humana em cada indivíduo, na sua singularidade, por via de uma aprendizagem contínua e de um esforço de aperfeiçoamento incessante, num processo de expansão de consciência que o torne mais lúcido e capaz de aprofundar o conhecimento acerca de si próprio e da realidade existencial do homem enquanto tal, e do universo como um todo, onde esta existência tem lugar.

No homem, a virtude só pode estar em mais consciência, e não o contrário, o que o reduziria progressivamente à mecânica animalidade que só em parte o constitui. Só a consciência lhe permite uma real compreensão do mundo e da natureza das coisas, compreensão no sentido inglês de understand (situar-se debaixo, na base que sustenta as coisas; ver as coisas a partir do ponto de vista privilegiado do fundamento, que lhes confere ser e verdade). É por isso que para o homem saber não chega; factos não são suficientes, porque são parciais, porque não contam a totalidade, mas apenas a parte; porque não revelam toda a história. O homem aspira a conhecer; o mesmo é dizer, a compreender desde a raiz; está na natureza do homem querer olhar para dentro da toca do coelho, saber o que lá há, até onde vai a sua profundidade. O homem aspira à inteligibilidade, à compreensão da teia mais geral que sustenta os factos e lhes confere coerência e racionalidade; a curiosidade humana exige o conhecimento das ratio essendi, a razão de ser das coisas serem como são, e este desejo não tem quaisquer limites.


Educação e o seu papel

Numa civilização digna desse nome, fundada sobre o propósito fundamental da realização plena da pessoa humana, creio ser evidente o papel crucial da Educação. Sobre a Educação, entendida no sentido mais lato possível, recai a enorme responsabilidade de formar, não apenas o cidadão, não apenas o técnico, não apenas o especialista, mas o homem na sua inteireza, que contempla as dimensões ética, cognitiva, estética, física, psicológica, emotiva-afetiva, espiritual, etc. Cabe à Educação a função axial de, como dizia Hannah Arend, introduzir as novas gerações ao mundo, não apenas ao “mundo social” ou “laboral”, ao “mundo do trabalho” ou “mercado”, mas ao mundo no sentido mais radical e abrangente possível, que se confunde em última instância com a própria Vida e as suas exigências, com a Existência enquanto mistério e enquanto problema a resolver; um problema com muitas variáveis – cognitiva, emocional-afetiva, existencial, etc. Trata-se, na verdade, não de um problema secundário ou derivado, mas do problema por excelência, o alfa e o ómega das nossas existências humanas particulares, cuja resposta significaria a descoberta da própria ratio essendi, a razão de ser das nossas vidas. Um problema que todos sabemos ser muito prático e central nas nossas existências, e não meramente teórico e entendido como marginal e para tratar “quanto houver tempo”, como um hobby privado, que em nada deve importunar o fluir normal da corrente social, política e económica, cujos propósitos são normalmente muitos diversos e mais “mundanos” e supostamente mais “urgentes”. Trata-se da nossa vida e do seu sentido, tudo aspetos que emergem nos embates e confrontos muito reais e práticos da existência, nos momentos de grande perda, no sofrimento e na dor, nas dificuldades de relação e comunicação com os outros, no tédio e nos vazios de sentido, na perspetiva da morte, nas impermanências do amor, etc.


Cabe à Educação, por conseguinte, a enorme e crucial responsabilidade de abrir ao indivíduo todos os principais horizontes do mundo e da vida, de o colocar perante os horizontes do conhecido e do possível – da ciência e do conhecimento em geral, da arte e da cultura, da espiritualidade e da criação, do heroísmo ético, da psicologia, etc. É absolutamente essencial para a formação do homem que este conheça bem as fronteiras do espírito humano, em todas as suas vertentes e dimensões, pela simples razão de que essas são também, globalmente, as fronteiras do seu próprio espírito, e por conseguinte da sua humanidade. Desse modo, ele saberá até onde pode ir, e o que poderá ele próprio realizar, construir e criar. Saber-se-á membro de pleno direito da família humana, a quem não é pedido somente que preserve e reproduza acriticamente um património de conhecimento de cultura, mas que o aumente e aperfeiçoe, que o renove e atualize, e que no seu modo de viver, nas suas ações e criações, lhe preste continuamente homenagem vivendo a sua vida o melhor possível, de acordo com as promessas inscritas na sua própria humanidade singular, expressão particular da humanidade universal.