Eis o que
significa atravessar o deserto: enfrentar os próprios fantasmas, os próprios
medos, os pensamentos e as mágoas do que fizemos ou não fizemos, os
arrependimentos; vencer todos esses “Ciclopes e Lestrigões” (como dizia Kavafys
no Ítaca) que todos temos dentro de nós, e teimamos em lançar à nossa
frente no caminho, e que frequentemente nos paralisam. O medo que nos inspiram
limita-nos, faz-nos desistir, impede-nos de andar para a frente e de
realizarmos a nossa plena humanidade (cuja outra face é a nossa plena
divindade, ambas sendo uma e a mesma coisa). Todos os Cristos e Budas que se
lançaram no deserto – fosse de um modo literal ou por via de uma ascese, que
sempre significa um internamento em si próprio - não tinham outra intenção
senão a de habituarem os seus olhos espirituais à escuridão, para que,
paradoxalmente, estes pudessem ter um vislumbre dessa luz plena e muito subtil
que constitui o nosso ser profundo, a nossa consciência, e que participa do
Verbo (Logos), i.e., da realidade metafísica, ontológica do mundo, a “Verdade”
ou “Lei cósmica”. Mergulhar no deserto tem o sentido de uma dúvida radical e
hiperbólica à la Descartes: esperar
que do “nevoeiro” e da aridez informe do nada emirja uma evidência, uma verdade
tão sólida e profunda que não possa ser “nadificada” pelo rolo compressor da
dúvida. Neste caso, como em qualquer caso, a verdade e certeza que se espera
que emirja, ao mergulhar no deserto, é a da própria Alma, que se espera que
tome o lugar do nada lançando a sua luz. É uma profunda e radical busca pela
autenticidade, pela essência.
É Heraclito que
diz: “Os limites da alma não é possível
descobri-los, mesmo percorrendo todos os caminhos, tão profundo é o Logos que a
sustenta.”
Se o silêncio, a
escuridão, a solidão, o vazio, a falta de estímulo sensorial, não te perturbam,
ou te perturbam menos, então já venceste. Habituaste-te à Presença inefável da
tua consciência, que tudo vê, bem enraizada na retaguarda do teu ser. Já não és
escravo de sensações, e nem sequer de ideias, porque te descobriste superior a
ambas; já não és guiado ou coagido por elas a ir por aqui ou por ali, escravo
de apetites ou ilusões, mas és tu que as guias e pastoreias. Tornaste-te
realmente no pastor dos teus pensamentos, no senhor da tua vontade, porque a
cada momento reconheces que não és exclusivamente o que pensas ou sentes, nem
sequer a soma de todos os teus pensamentos e sensações, mas a consciência que
pensa ou sente, situada sempre aquém e além deles, e a eles sempre
infinitamente superior. Essa consciência que podes entrever imperfeitamente na
retaguarda da tua mente, como um espelho que tudo reflete, nem sequer se
confunde com a tua ideia de “eu”, mas ultrapassa-a ao ponto de essa Presença te
parecer – pelo menos no início -, estranha a ti próprio, alheia, como se fosse
um “outro eu” que coexistisse contigo na mesma pessoa. Depois de te habituares
a essa Presença, tornas-te nela, e desta feita já não é ela que te parece
estranha, mas o próprio “eu” pessoal e identitário que te habituaste a
alimentar ao longo da tua vida como sendo tu, a quem dás um nome e que
reconheces ao espelho – descobres que esse “eu” não é senão uma fachada, uma
máscara, uma existência apenas nominal. A tua consciência é muito mais vasta
que os limites do teu eu nominal, embora não possas negar ao teu eu nominal a
sua missão, e a sua verdade.
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