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quarta-feira, abril 08, 2015

Acredito em Deus




Acredito em Deus, não apenas como princípio fundamental do real, como realidade última subjacente a tudo o que existe, mas também – e sobretudo – enquanto Pessoa (acaso poderia ser de outro modo?). Não é uma fé perfeita. Muitas vezes tenho dúvidas; posso até dizer que a dúvida é coexistente com a minha crença – quando um está presente, o outro também. Nenhuma dúvida, porém, vai suficientemente fundo para ser capaz de subverter ou suprimir a minha crença na pessoa de Deus. Todas as minhas dúvidas têm origem na lógica: como posso eu sustentar racionalmente uma crença num ser que nunca conheci, que nunca vi com os meus olhos, baseado apenas num “sentido de Deus” que julgo possuir, e na minha capacidade para pensar conceitos tão elevados como os de Absoluto, Infinito, Ser, que pela sua extensão e abstração parecem tudo conter e necessariamente existir, ainda que a sua natureza me escape? Aí está a questão: nada parece justificar o meu salto lógico da ideia que sou capaz de pensar, para a realidade que eu creio existir; isto é, não sou capaz de justificar racionalmente o salto lógico que vai da minha crença no Absoluto, que apenas conheço como ideia, para a minha crença no Absoluto cuja natureza consiste em ser pessoa, isto é, a pessoa máxima – Deus.

E no entanto, acredito. Acredito numa razão universal da qual a minha própria existência e racionalidade são expressões particulares, e que portanto coexiste a todos os meus actos de pensamento e de consciência (o Logos); acredito também que a minha consciência particular é a expressão possível, no quadro das possibilidades que o mundo material oferece, de uma consciência muito maior, diria mesmo ilimitada. A consciência, enquanto tal, é o fundamento da minha personalidade (do latim persona = pessoa), e portanto acredito - melhor seria dizer, sinto ou intuo – que à minha personalidade particular coexiste uma personalidade ilimitada. Ela também sou eu, também está em mim, embora me ultrapasse infinitamente, o que faz de mim uma existência permanentemente “em aberto”, isto é, uma pessoa ou personalidade cujas fronteiras da sua própria concretização se situam fora de si; ou seja, é no transcendente que se situa a última fronteira da minha realização pessoal, o limite da minha perfeição, a minha finalidade (télos). Já lá voltarei.

Mesmo que, sustentado na lógica, eu me forçasse continuamente a negar o que sinto, a minha crença em Deus não deixaria de se impor e de prevalecer por fim, sobrepondo-se a qualquer ceticismo baseado na lógica imediata. Na verdade, o meu ceticismo não me abandonou – apenas se habituou a coexistir com a minha fé metafísica, cada um no seu nível, um mais profundo outro mais superficial, um mais lógico-racional, outro mais intuitivo-existencial, respeitando-se mutuamente. Há muito aprendi que não existem apenas factos ou verdades lógicas, mas também verdades existenciais sem as quais a vida ou existência pessoal se torna impossível – é o caso, por exemplo, da crença na liberdade ou livre-arbitrio. Mesmo que a ciência fosse capaz de demonstrar que somos completamente determinados por leis físicas desconhecidas, e que portanto não somos livres, ainda assim o nosso caráter fundamentalmente existencial exigiria a liberdade enquanto condição fundamental. Seria impossível viver sem acreditar na possibilidade da escolha, e impossível construir uma ética humana sem o fundamento da responsabilidade.

Como eu dizia, o impulso para acreditar em Deus é mais forte que a simples lógica, e vem como que acoplado ao meu mais alto pensamento, o pensamento do universal – Absoluto, Infinito, Totalidade -; e não só ao meu mais alto pensamento, como ao meu mais alto sentimento (na verdade ambos se completam, o segundo oferecendo algum conteúdo experiencial ao primeiro, que é todo forma, esquema, abstração concetual). A este último posso chamar de sentimento do Sublime ou do Belo. Se é verdade, como acredito, que a realização do que somos deve muito não apenas ao que somos capazes de pensar, mas também ao que somos capazes de sentir, não posso por conseguinte negar Deus sem me negar a mim próprio. Por este ponto de vista, prefiro viver em contradição lógica – que é apenas paradoxo e reside apenas na mente – do que em contradição existencial – que me implica todo. Antes em contradição lógica do que em contradição comigo.

Embora, tal como antes disse, não possa justificar logicamente a minha conclusão de que Deus existe a partir da premissa de que o Absoluto é pensável como ideia, posso pelo menos justificar racionalmente o modo como chego a esta ideia, e a outras similares como Totalidade, Ser, Unidade ou Existência Primeira. Posso afirmar, por via de um exercício válido de abstração ou de regressão até ao infinito, que se existem seres particulares tem de existir um Ser Geral, se existe a multiplicidade tem de existir a Unidade, se existe uma cadeia de causas e efeitos têm de existir uma Causa Primeira, por natureza não causada, ou causada exclusivamente por si própria. Como disse, pensar isto é perfeitamente aceitável como esquema, ainda que não possamos conceber a natureza metafísica de tais realidades, se de facto existem. Posso, deste modo, afirmar que o multiverso das existências particulares (nas quais estou incluído) se reduz a um Universo, ou seja, uma Unidade que é uma Existência Universal, que não apenas engloba todas as existências particulares, como as causa e subjaz. Este é o maior – ou pelo menos o mais abrangente – conceito de existência que posso conceber, embora não possa experimentar a sua natureza, se é que a tem – pelo menos não com os meus sentidos normais. Só há uma existência que posso experimentar, não apenas como vago conceito, mas como vida; não apenas como objeto de pensamento, mas como subjetividade (de subjetum = sujeito) – a minha própria existência. Posso aceder ao meu próprio absoluto, e não apenas pensá-lo, exprimindo-se na minha vida como totalidade existencial cujos focos irredutíveis são o “meu eu” e a “minha circunstância”, em torno dos quais orbitam todo o meu mundo e existência pessoais.

O que quero dizer é que, antes de mais, e acima de tudo, cada um de nós é uma existência que busca cumprir-se no máximo das suas potencialidades, atingir o seu fim. Na base tudo aquilo que podemos humanamente pensar ou sentir, de toda a nossa cultura, de toda a nossa moral, de todos os nossos projetos pessoais, de todos os nossos desejos e aspirações mais banais, está um a priori que é uma pulsão inexorável para ser. Não para ser animal ou objeto, mas para ser pessoa. Tanto quanto sabemos, não há forma de ser mais alta (e sublinho o “tanto quanto sabemos”). E embora ser pessoa seja a nossa aspiração mais elevada, a nossa verdadeira e mais profunda vocação, não lhe conhecemos nem a forma nem o conteúdo exatos. Para que uma pedra ou um gato se “realizem” não é preciso muito. Os limites da sua realização estão bem definidos e determinados à partida. Por outro lado, os limites da pessoa são desconhecidos. O ser humano, enquanto existência que busca cumprir-se, nunca sabe realmente quando a sua luta chegou ao fim, quando atingiu a plenitude do seu ser. Tanto quanto sabemos, podíamos viver mil anos e não ultrapassarmos a condição de existências insatisfeitas, pessoas por cumprir. A questão é esta: será que as coisas poderiam passar-se de outra forma para um ser cujo mais alto pensamento/ideal é o de Deus, o mesmo é dizer, o de Infinito, o de Perfeição existencial? É como se os limites da nossa realização pessoal não estivessem contidos em nós, na nossa condição biológica ou cultural, mas fora de nós. Dito de outro modo, como se só nos pudéssemos realizar completamente fora de nós, isto é, no transcendente – em Deus. Para usar uma imagem, é como se a nossa existência particular fosse um rio que corresse para Deus, desaguando em Deus. Neste sentido, a demanda da personalidade para se cumprir implica necessariamente uma abertura da personalidade particular para, em obediência ao seu mais alto pensamento e à sua mais alta intuição, ir ao encontro dos seus limites, que se coincidem com os limites da Personalidade Ilimitada que lhe coexiste, sendo que esta última contém aquela completamente. É como se na condição humana existisse uma contradição interna que só no Infinito pode ser superada, do mesmo modo que só no Infinito duas rectas paralelas podem esperar encontrar-se alguma vez. E a contradição é possivelmente esta: só no ilimitado (em Deus) a existência da pessoa pode encontrar os seus limites (i.e. cumprir-se plenamente como Pessoa), sendo que o ilimitado, por definição, não tem limites.

Para uma existência cuja essência (i.e., ponto de partida e destino) é ser pessoa, conceber a ideia de Existência Perfeita, de Infinito, de Absoluto (tudo variações do mesmo pensamento), não apenas tem enorme apelo, como ela não pode ser senão concebida como o ideal ético de perfeição ao qual toda existência humana deve aspirar. É evidente que para a maioria a realização deste ideal não cabe na exiguidade temporal de uma vida humana. A origem da ideia da “vida do além” talvez esteja precisamente aqui, na frustração acumulada de gerações e gerações de existências pessoais que falharam em cumprir a promessa de infinito tragicamente anunciada na sua consciência. A promessa de Deus que se renova a cada nova existência que emerge, uma nova aliança a cada novo homem. Seja algures num paraíso celeste, ou no culminar de um ciclo de muitas existências, a existência que busca há-de encontrar os limites da sua perfeição pessoal, de acordo com a promessa do seu mais alto pensamento e sentimento.

Pois, não é demais repetir, e todos temos essa experiência – os limites da pessoa são desconhecidos, situando-se muito para além da mera perfeição animal ou biológica, que com efeito rapidamente se atinge sem grande esforço. Mas, no homem, é esse “acréscimo”, esse “mais-qualquer-coisa” a que chamamos de “espírito” ou “personalidade” que faz toda a diferença, e que o empenha uma vida inteira numa busca por uma outra espécie de realização que está muito para além dos limites da sua biologia.

Heidegger pretendia definir-nos como “seres para a morte”; eu creio que é mais apropriado definir-nos como “seres para Deus”. O que nos “mata” na morte é a hipótese demasiado assustadora de que não haja tempo suficiente para cumprirmos a promessa de Infinito contida na nossa consciência, e que seja aniquilada em nós, demasiado cedo, uma força de vida que, por ter os seus limites em Deus, jamais deve morrer, ou pelo menos não antes de cumprir aquilo que nasceu para ser – uma perfeição chamada Pessoa, a divindade em nós, que é ao mesmo tempo o melhor que a nossa humanidade pode dar, em obediência ao que de mais alto pode pensar e sentir.  

Em conclusão, não sei se é ou não lógico acreditar em Deus. O que sei é que enquanto pessoa que sou, obediente ao apelo da minha vocação mais profunda para me concretizar no máximo da minha personalidade, não posso deixar de estar aberto e disponível para ir ao encontro do que me transcende, espaço ilimitado onde se situa a chave da minha realização, onde repousam as fronteiras do meu ser, impelido apenas pelas possibilidades que posso apenas vagamente entrever através do que posso pensar e sentir de mais elevado – o Absoluto que infinitamente me ultrapassa, e o Belo/Sublime que infinitamente me comove. 

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