Acredito em
Deus, não apenas como princípio fundamental do real, como realidade última
subjacente a tudo o que existe, mas também – e sobretudo – enquanto Pessoa (acaso poderia ser de outro
modo?). Não é uma fé perfeita. Muitas vezes tenho dúvidas; posso até dizer que
a dúvida é coexistente com a minha crença – quando um está presente, o outro
também. Nenhuma dúvida, porém, vai suficientemente fundo para ser capaz de
subverter ou suprimir a minha crença na pessoa de Deus. Todas as minhas dúvidas
têm origem na lógica: como posso eu sustentar racionalmente uma crença num ser
que nunca conheci, que nunca vi com os meus olhos, baseado apenas num “sentido
de Deus” que julgo possuir, e na minha capacidade para pensar conceitos tão
elevados como os de Absoluto, Infinito, Ser, que pela sua extensão e abstração
parecem tudo conter e necessariamente existir, ainda que a sua natureza me
escape? Aí está a questão: nada parece justificar o meu salto lógico da ideia
que sou capaz de pensar, para a realidade que eu creio existir; isto é, não sou
capaz de justificar racionalmente o salto lógico que vai da minha crença no
Absoluto, que apenas conheço como ideia, para a minha crença no Absoluto cuja
natureza consiste em ser pessoa, isto é, a pessoa máxima – Deus.
E no entanto,
acredito. Acredito numa razão universal da qual a minha própria existência e
racionalidade são expressões particulares, e que portanto coexiste a todos os
meus actos de pensamento e de consciência (o Logos); acredito também que a minha consciência particular é a
expressão possível, no quadro das possibilidades que o mundo material oferece,
de uma consciência muito maior, diria mesmo ilimitada. A consciência, enquanto
tal, é o fundamento da minha personalidade (do latim persona = pessoa), e portanto acredito - melhor seria dizer, sinto
ou intuo – que à minha personalidade particular coexiste uma personalidade
ilimitada. Ela também sou eu, também está em mim, embora me ultrapasse
infinitamente, o que faz de mim uma existência permanentemente “em aberto”, isto
é, uma pessoa ou personalidade cujas fronteiras da sua própria concretização se
situam fora de si; ou seja, é no transcendente que se situa a última fronteira
da minha realização pessoal, o limite da minha perfeição, a minha finalidade (télos). Já lá voltarei.
Mesmo que,
sustentado na lógica, eu me forçasse continuamente a negar o que sinto, a minha
crença em Deus não deixaria de se impor e de prevalecer por fim, sobrepondo-se
a qualquer ceticismo baseado na lógica imediata. Na verdade, o meu ceticismo
não me abandonou – apenas se habituou a coexistir com a minha fé metafísica,
cada um no seu nível, um mais profundo outro mais superficial, um mais
lógico-racional, outro mais intuitivo-existencial, respeitando-se mutuamente. Há
muito aprendi que não existem apenas factos ou verdades lógicas, mas também
verdades existenciais sem as quais a vida ou existência pessoal se torna
impossível – é o caso, por exemplo, da crença na liberdade ou livre-arbitrio.
Mesmo que a ciência fosse capaz de demonstrar que somos completamente
determinados por leis físicas desconhecidas, e que portanto não somos livres,
ainda assim o nosso caráter fundamentalmente existencial exigiria a liberdade
enquanto condição fundamental. Seria impossível viver sem acreditar na
possibilidade da escolha, e impossível construir uma ética humana sem o
fundamento da responsabilidade.
Como eu dizia, o
impulso para acreditar em Deus é mais forte que a simples lógica, e vem como
que acoplado ao meu mais alto pensamento, o pensamento do universal – Absoluto,
Infinito, Totalidade -; e não só ao meu mais alto pensamento, como ao meu mais
alto sentimento (na verdade ambos se completam, o segundo oferecendo algum
conteúdo experiencial ao primeiro, que é todo forma, esquema, abstração
concetual). A este último posso chamar de sentimento do Sublime ou do Belo. Se
é verdade, como acredito, que a realização do que somos deve muito não apenas
ao que somos capazes de pensar, mas também ao que somos capazes de sentir, não
posso por conseguinte negar Deus sem me negar a mim próprio. Por este ponto de
vista, prefiro viver em contradição lógica – que é apenas paradoxo e reside apenas
na mente – do que em contradição existencial – que me implica todo. Antes em
contradição lógica do que em contradição comigo.
Embora, tal como
antes disse, não possa justificar logicamente a minha conclusão de que Deus
existe a partir da premissa de que o Absoluto é pensável como ideia, posso pelo
menos justificar racionalmente o modo como chego a esta ideia, e a outras
similares como Totalidade, Ser, Unidade ou Existência Primeira. Posso afirmar,
por via de um exercício válido de abstração ou de regressão até ao infinito,
que se existem seres particulares tem de existir um Ser Geral, se existe a
multiplicidade tem de existir a Unidade, se existe uma cadeia de causas e
efeitos têm de existir uma Causa Primeira, por natureza não causada, ou causada
exclusivamente por si própria. Como disse, pensar isto é perfeitamente
aceitável como esquema, ainda que não possamos conceber a natureza metafísica
de tais realidades, se de facto existem. Posso, deste modo, afirmar que o
multiverso das existências particulares (nas quais estou incluído) se reduz a
um Universo, ou seja, uma Unidade que é uma Existência Universal, que não
apenas engloba todas as existências particulares, como as causa e subjaz. Este
é o maior – ou pelo menos o mais abrangente – conceito de existência que posso
conceber, embora não possa experimentar a sua natureza, se é que a tem – pelo
menos não com os meus sentidos normais. Só há uma existência que posso
experimentar, não apenas como vago conceito, mas como vida; não apenas como
objeto de pensamento, mas como subjetividade (de subjetum = sujeito) – a minha própria existência. Posso aceder ao
meu próprio absoluto, e não apenas pensá-lo, exprimindo-se na minha vida como
totalidade existencial cujos focos irredutíveis são o “meu eu” e a “minha
circunstância”, em torno dos quais orbitam todo o meu mundo e existência
pessoais.
O que quero
dizer é que, antes de mais, e acima de tudo, cada um de nós é uma existência
que busca cumprir-se no máximo das suas potencialidades, atingir o seu fim. Na
base tudo aquilo que podemos humanamente pensar ou sentir, de toda a nossa
cultura, de toda a nossa moral, de todos os nossos projetos pessoais, de todos
os nossos desejos e aspirações mais banais, está um a priori que é uma pulsão
inexorável para ser. Não para ser animal ou objeto, mas para ser pessoa. Tanto quanto sabemos, não há
forma de ser mais alta (e sublinho o “tanto quanto sabemos”). E embora ser
pessoa seja a nossa aspiração mais elevada, a nossa verdadeira e mais profunda
vocação, não lhe conhecemos nem a forma nem o conteúdo exatos. Para que uma
pedra ou um gato se “realizem” não é preciso muito. Os limites da sua
realização estão bem definidos e determinados à partida. Por outro lado, os
limites da pessoa são desconhecidos. O ser humano, enquanto existência que
busca cumprir-se, nunca sabe realmente quando a sua luta chegou ao fim, quando
atingiu a plenitude do seu ser. Tanto quanto sabemos, podíamos viver mil anos e
não ultrapassarmos a condição de existências insatisfeitas, pessoas por
cumprir. A questão é esta: será que as coisas poderiam passar-se de outra forma
para um ser cujo mais alto pensamento/ideal é o de Deus, o mesmo é dizer, o de
Infinito, o de Perfeição existencial? É como se os limites da nossa realização
pessoal não estivessem contidos em nós, na nossa condição biológica ou
cultural, mas fora de nós. Dito de outro modo, como se só nos pudéssemos
realizar completamente fora de nós, isto é, no transcendente – em Deus. Para
usar uma imagem, é como se a nossa existência particular fosse um rio que
corresse para Deus, desaguando em Deus. Neste sentido, a demanda da personalidade
para se cumprir implica necessariamente uma abertura da personalidade
particular para, em obediência ao seu mais alto pensamento e à sua mais alta
intuição, ir ao encontro dos seus limites, que se coincidem com os limites da
Personalidade Ilimitada que lhe coexiste, sendo que esta última contém aquela
completamente. É como se na condição humana existisse uma contradição interna
que só no Infinito pode ser superada, do mesmo modo que só no Infinito duas
rectas paralelas podem esperar encontrar-se alguma vez. E a contradição é
possivelmente esta: só no ilimitado (em Deus) a existência da pessoa pode
encontrar os seus limites (i.e. cumprir-se plenamente como Pessoa), sendo que o
ilimitado, por definição, não tem limites.
Para uma
existência cuja essência (i.e., ponto de partida e destino) é ser pessoa, conceber
a ideia de Existência Perfeita, de Infinito, de Absoluto (tudo variações do
mesmo pensamento), não apenas tem enorme apelo, como ela não pode ser senão
concebida como o ideal ético de perfeição ao qual toda existência humana deve
aspirar. É evidente que para a maioria a realização deste ideal não cabe na
exiguidade temporal de uma vida humana. A origem da ideia da “vida do além”
talvez esteja precisamente aqui, na frustração acumulada de gerações e gerações
de existências pessoais que falharam em cumprir a promessa de infinito tragicamente
anunciada na sua consciência. A promessa de Deus que se renova a cada nova
existência que emerge, uma nova aliança a cada novo homem. Seja algures num
paraíso celeste, ou no culminar de um ciclo de muitas existências, a existência
que busca há-de encontrar os limites da sua perfeição pessoal, de acordo com a
promessa do seu mais alto pensamento e sentimento.
Pois, não é
demais repetir, e todos temos essa experiência – os limites da pessoa são
desconhecidos, situando-se muito para além da mera perfeição animal ou
biológica, que com efeito rapidamente se atinge sem grande esforço. Mas, no
homem, é esse “acréscimo”, esse “mais-qualquer-coisa” a que chamamos de
“espírito” ou “personalidade” que faz toda a diferença, e que o empenha uma
vida inteira numa busca por uma outra espécie de realização que está muito para
além dos limites da sua biologia.
Heidegger
pretendia definir-nos como “seres para a morte”; eu creio que é mais apropriado
definir-nos como “seres para Deus”. O que nos “mata” na morte é a hipótese
demasiado assustadora de que não haja tempo suficiente para cumprirmos a
promessa de Infinito contida na nossa consciência, e que seja aniquilada em
nós, demasiado cedo, uma força de vida que, por ter os seus limites em Deus,
jamais deve morrer, ou pelo menos não antes de cumprir aquilo que nasceu para
ser – uma perfeição chamada Pessoa, a divindade em nós, que é ao mesmo tempo o
melhor que a nossa humanidade pode dar, em obediência ao que de mais alto pode
pensar e sentir.
Em conclusão,
não sei se é ou não lógico acreditar em Deus. O que sei é que enquanto pessoa
que sou, obediente ao apelo da minha vocação mais profunda para me concretizar
no máximo da minha personalidade, não posso deixar de estar aberto e disponível
para ir ao encontro do que me transcende, espaço ilimitado onde se situa a
chave da minha realização, onde repousam as fronteiras do meu ser, impelido
apenas pelas possibilidades que posso apenas vagamente entrever através do que
posso pensar e sentir de mais elevado – o Absoluto que infinitamente me
ultrapassa, e o Belo/Sublime que infinitamente me comove.
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