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segunda-feira, abril 13, 2015

Demasiado sofrimento



Há demasiado sofrimento no mundo. A maior parte dele está completamente longe da nossa vista, quando mais do nosso coração. De vez em quando passamos por um velho mendigo na rua, ou uma mulher, ou uma criança triste, e ao vê-los prostrados e reduzidos, ao nível do chão, sujos e maltrapilhos, somos tocados pela sua miséria. Quando tal acontece pergunto-me em silêncio "O que comeu este homem hoje?", "Que espécie de enxerga o espera à noite?", "Que abrigo da noite fria?", "Que abrigo da solidão"?, "Que espécie de desespero?"... E faço-o do alto da minha condição, erecto e sadio, estômago cheio e já à espera da próxima refeição, dinheiro no bolso, uma casa, um quarto e uma cama para voltar depois das agruras do dia, uma palavra amiga e familiar e uma refeição quente...e uma espécie de esperança que me ilumina o hoje e o amanhã.

Há demasiada dor, demasiado desespero. Agora mesmo, há demasiada gente doente à espera de morrer numa cama de hospital, para quem a noite, a solidão e o silêncio têm o sabor da desesperança e o odor da morte que espreita. Nenhum futuro, nenhuma esperança de salvação. Homens, velhos, crianças. Há demasiada gente sem voz por essas periferias escusas do mundo das quais ninguém quer saber. Gente sem lei, homem ou instituição que a proteja, que a represente. Gente exilada, refugiada sine die por causa de guerras e conflitos que não provocou, que não pediu (falo eu, o exilado/refugiado por capricho e opção...). Gente que trabalha em antigas e novas formas de escravatura, de sol a sol, tratados como mercadoria, maltratados, espoliados, explorados, meras máquinas sem rosto, números que não merecem sequer um olhar de humanidade - e tudo isto para ganharem uma côdea de pão que não lhes chega para matar a fome, nem a sua nem a dos seus filhos, cujo choro esfaimado são impotentes para calar, de dia e de noite.
Há demasiada gente presa, alguns por coisa nenhuma, outros apenas por pensar em voz alta, outros porque ousaram dizer o que outros preferem calar, por medo ou comodismo. Há quem adormeça e acorde todos os dias num eterno crepúsculo, que viva cada hora - sempre demasiado longa - imerso no frio da solidão e de um medo que é terror e não desata. Há demasiada gente que não tem para onde ir à noite, depois das agruras do dia; que não tem onde descansar, lugar a que chamar lar, onde pousar a cabeça, onde aquecer o corpo e alma e encontrar uma presença amiga, que às vezes nem precisa de falar mas só estar. E mesmo entre aqueles que têm para onde ir e que não estão sós, há quem tenha casa sem ter lar. Desses, há quem só queira ter paz, viver com quem não lhe bata, quem não o atormente, quem não o prenda, quem não o use, quem não o subjugue, quem não o mate. Já não se pede que o ame, mas apenas que o liberte, que o respeite. Há quem só queira que o pouco lar que tem não se transforme num inferno - já lhe basta, tantas vezes, o inferno que encontra na rua, no trabalho, na vida.

Há demasiada gente, mesmo entre os que "têm tudo", que sofre como se não tivesse nada. Presos por ilusões, dependências e más escolhas que fizeram, porque pensavam que era nelas, nas dependências que criaram e más decisões que tomaram, que se encontrava a sua frágil felicidade. Lançaram-se a si próprios numa teia da qual já não conseguem libertar-se, num labirinto do qual já não sabem sair.

Penso também em todos aqueles que todos os dias, várias horas por dia, consentem em deixar à porta dos seus trabalhos e ocupações (muitas vezes detestáveis, inumanas) a sua soberania pessoal, como se deixa o casaco ou o guarda-chuva, para se tornarem parte de uma engrenagem que prontamente os esmaga à mínima hesitação ou sinal de inadaptação, ou se por acaso decidem ser diferentes e afirmar o seu próprio e humano ritmo. Na maior parte do tempo não somos senhores de nós próprios, abdicamos da nossa vontade e liberdade para mendigarmos umas horas de gozo, umas quantas horas para podermos sentir o pulso do nosso "eu", para vivermos um pouco no espaço da nossa intimidade e dos nossos sonhos, umas poucas "folgas" da pressão da roda dentada para que sintamos a agradável sensação de sermos senhores de nós próprios e do nosso destino. Pena que na maior parte das vezes essa sensação seja apenas como um sonho de Cinderela, sem consequências práticas para a nossa vida, sem que sejamos capazes ou sequer queiramos, nessas horas de soberania, fazer mais do que sonhar a nossa própria liberdade, lançar reais sementes de projeto, construir um futuro mais de acordo com o que realmente somos e queremos realmente ser.

Há, pois, que tecer o futuro, um que esteja de acordo com o sentimento de autenticidade e soberania pessoal que todos encontramos nas poucas horas de liberdade que a máquina nos consente, essa máquina/sistema que joga tão bem com as nossas necessidades e dependências - e que nós permitimos, porque embora muitas das necessidades sejam reais, outras são completamente inventadas, e nós consentimos e absorvemos, como bons e obedientes consumidores que não estão realmente dispostos a perder em coisas, posses e bens materiais para ganhar em liberdade, espírito, soberania pessoal, cultura.
Mas há sofrimentos e dores muito mais profundos, e é bom que os tenhamos sempre em mente, em nome da consciência e da verdade. Neste exato momento, há quem tenha perdido um filho(a), um irmão(ã), um pai, uma mãe, um amigo(a), seja num acidente de carro, de aviação, seja levado por uma doença, seja num atentado terrorista, seja na sequência de um obus disparado numa qualquer zona de guerra por este mundo fora - apenas mais um "dano colateral" de um conflito onde se jogam mais altos interesses, que raramente são os do povo, que é sempre, mesmo na vitória, aquele que mais perde. Falo por mim: leio a notícia do jornal, a pequena breve ou primeira página que seja, e passo à frente. Não me interessa; não me diz respeito. Nem cai o céu nem o mundo pára por causa disso. Se fosse comigo... haviam certamente de cair os sete céus, o carmo e a trindade; e a indiferença do mundo iria doer-me como mil punhais.
Se por um momento calarmos o nosso ego e nos dispusermos a ouvir, é certo que ouviremos os gritos dessa mãe, desse irmão, desse pai, desse amigo; de todos aqueles que, agora mesmo, num instante imprevisto, perderam aquilo que tinham de mais precioso e clamam por justiça divina. E ouviremos esses gritos multiplicados por mil, ou por milhões, e o sol de primavera que agora mesmo nos ilumina com a cor da alegria (o mesmo sol que ilumina todos esses que sofrem para além de qualquer palavra) já não nos parecerá tão jovial e alegre.

A verdade é que há demasiada dor no mundo, e nós indiferentes, anestesiados, até que nos calhe a nós. Há quem diga, para não ter de se incomodar, que não há nada que possamos fazer quanto a isso, ou que o que quer que façamos é pura e simplesmente irrelevante (o que para mim é mais grave). A miséria material e moral, a doença, a dor, são tudo fatalidades.

Quanto à miséria moral e material, basta dizer que é urgente abandonarmos uma série de preconceitos bem mais enraizados do que possamos imaginar, segundo os quais 1) a miséria é uma punição sobre aqueles que não se "souberam governar" ou adaptar às exigências da sociedade, do mercado e do mérito; 2) que a miséria é uma "condição de nascimento", isto é, de que quem nasce miserável, ou é originário de um meio ou classe de indigentes, há de ser miserável toda a vida, ou tem como que o gosto pela miséria, ou "predisposição" para tal; 3) que a miséria faz parte do modo como o sistema económico funciona e se comporta, e portanto é condição necessária ao progresso económico das sociedades. Ora, estou de acordo que a desigualdade seja uma condição necessária à verdadeira justiça social, se a entendermos como justiça distributiva baseada no trabalho e no mérito. Naturalmente, quem trabalha mais e melhor merece receber mais e melhor; quem tem mais qualificações merece ser mais bem pago do que quem tem menos qualificações, etc. Todos podemos, em princípio, concordar com isto. Mas isto está muito longe de legitimar o darwinismo social, isto é, o pressuposto de que a vida em sociedade se deve basear na "lei do mais apto", ao ponto de se considerar justa a exclusão de milhões de "inadaptados", fracos e frágeis, sejam velhos e doentes que não podem trabalhar, sejam indivíduos que, por qualquer circunstância, não tiveram acesso a uma educação ou formação adequada, seja quem, por causa de um negócio falhado ou por não conseguir encontrar trabalho regular, se vê de repente atirado para as malhas da pobreza e da indigência.

Por fim, há que abandonar a ideia perigosa - embora muito cómoda - de que o que quer que façamos, a nível individual, é irrelevante. O velho doente e prostrado que encontro na rua e a quem ofereço o almoço, ou simplesmente um sentido "Bom dia!" de olhos nos olhos, de certo não sentirá a minha pequena ação como irrelevante. Pode ser irrelevante para mim, nunca para ele. É verdade que não posso mudar a sociedade de um dia para o outro, mas quem falou em mudar a sociedade? A minha pequena-grande ação, somada a um milhão de ações semelhantes todos os dias, em toda a parte, há com certeza de ser relevante um milhão de vezes, para um milhão de pessoas; e o que é relevante para um milhão de pessoas pode ser, pelo seu impacto imediato ou apenas pelo exemplo, relevante para milhões de famílias ou comunidades. Por fim, devagar, talvez se consiga fazer o que se julgava impossível: mudar a sociedade.


Até lá, é preciso que nos mudemos a nós próprios, começando por mudar de mentalidade. Há demasiado sofrimento no mundo - e não é ontem nem a semana passada, mas já, agora mesmo! Ter isso em mente é o princípio de um acordar, o princípio de uma expansão de consciência que nos pode levar a agir se esse sofrimento não for sentido como algo alheio, mas como algo que nos toca como se fosse nosso, que nos incomoda e nos perturba.

quarta-feira, abril 08, 2015

Acredito em Deus




Acredito em Deus, não apenas como princípio fundamental do real, como realidade última subjacente a tudo o que existe, mas também – e sobretudo – enquanto Pessoa (acaso poderia ser de outro modo?). Não é uma fé perfeita. Muitas vezes tenho dúvidas; posso até dizer que a dúvida é coexistente com a minha crença – quando um está presente, o outro também. Nenhuma dúvida, porém, vai suficientemente fundo para ser capaz de subverter ou suprimir a minha crença na pessoa de Deus. Todas as minhas dúvidas têm origem na lógica: como posso eu sustentar racionalmente uma crença num ser que nunca conheci, que nunca vi com os meus olhos, baseado apenas num “sentido de Deus” que julgo possuir, e na minha capacidade para pensar conceitos tão elevados como os de Absoluto, Infinito, Ser, que pela sua extensão e abstração parecem tudo conter e necessariamente existir, ainda que a sua natureza me escape? Aí está a questão: nada parece justificar o meu salto lógico da ideia que sou capaz de pensar, para a realidade que eu creio existir; isto é, não sou capaz de justificar racionalmente o salto lógico que vai da minha crença no Absoluto, que apenas conheço como ideia, para a minha crença no Absoluto cuja natureza consiste em ser pessoa, isto é, a pessoa máxima – Deus.

E no entanto, acredito. Acredito numa razão universal da qual a minha própria existência e racionalidade são expressões particulares, e que portanto coexiste a todos os meus actos de pensamento e de consciência (o Logos); acredito também que a minha consciência particular é a expressão possível, no quadro das possibilidades que o mundo material oferece, de uma consciência muito maior, diria mesmo ilimitada. A consciência, enquanto tal, é o fundamento da minha personalidade (do latim persona = pessoa), e portanto acredito - melhor seria dizer, sinto ou intuo – que à minha personalidade particular coexiste uma personalidade ilimitada. Ela também sou eu, também está em mim, embora me ultrapasse infinitamente, o que faz de mim uma existência permanentemente “em aberto”, isto é, uma pessoa ou personalidade cujas fronteiras da sua própria concretização se situam fora de si; ou seja, é no transcendente que se situa a última fronteira da minha realização pessoal, o limite da minha perfeição, a minha finalidade (télos). Já lá voltarei.

Mesmo que, sustentado na lógica, eu me forçasse continuamente a negar o que sinto, a minha crença em Deus não deixaria de se impor e de prevalecer por fim, sobrepondo-se a qualquer ceticismo baseado na lógica imediata. Na verdade, o meu ceticismo não me abandonou – apenas se habituou a coexistir com a minha fé metafísica, cada um no seu nível, um mais profundo outro mais superficial, um mais lógico-racional, outro mais intuitivo-existencial, respeitando-se mutuamente. Há muito aprendi que não existem apenas factos ou verdades lógicas, mas também verdades existenciais sem as quais a vida ou existência pessoal se torna impossível – é o caso, por exemplo, da crença na liberdade ou livre-arbitrio. Mesmo que a ciência fosse capaz de demonstrar que somos completamente determinados por leis físicas desconhecidas, e que portanto não somos livres, ainda assim o nosso caráter fundamentalmente existencial exigiria a liberdade enquanto condição fundamental. Seria impossível viver sem acreditar na possibilidade da escolha, e impossível construir uma ética humana sem o fundamento da responsabilidade.

Como eu dizia, o impulso para acreditar em Deus é mais forte que a simples lógica, e vem como que acoplado ao meu mais alto pensamento, o pensamento do universal – Absoluto, Infinito, Totalidade -; e não só ao meu mais alto pensamento, como ao meu mais alto sentimento (na verdade ambos se completam, o segundo oferecendo algum conteúdo experiencial ao primeiro, que é todo forma, esquema, abstração concetual). A este último posso chamar de sentimento do Sublime ou do Belo. Se é verdade, como acredito, que a realização do que somos deve muito não apenas ao que somos capazes de pensar, mas também ao que somos capazes de sentir, não posso por conseguinte negar Deus sem me negar a mim próprio. Por este ponto de vista, prefiro viver em contradição lógica – que é apenas paradoxo e reside apenas na mente – do que em contradição existencial – que me implica todo. Antes em contradição lógica do que em contradição comigo.

Embora, tal como antes disse, não possa justificar logicamente a minha conclusão de que Deus existe a partir da premissa de que o Absoluto é pensável como ideia, posso pelo menos justificar racionalmente o modo como chego a esta ideia, e a outras similares como Totalidade, Ser, Unidade ou Existência Primeira. Posso afirmar, por via de um exercício válido de abstração ou de regressão até ao infinito, que se existem seres particulares tem de existir um Ser Geral, se existe a multiplicidade tem de existir a Unidade, se existe uma cadeia de causas e efeitos têm de existir uma Causa Primeira, por natureza não causada, ou causada exclusivamente por si própria. Como disse, pensar isto é perfeitamente aceitável como esquema, ainda que não possamos conceber a natureza metafísica de tais realidades, se de facto existem. Posso, deste modo, afirmar que o multiverso das existências particulares (nas quais estou incluído) se reduz a um Universo, ou seja, uma Unidade que é uma Existência Universal, que não apenas engloba todas as existências particulares, como as causa e subjaz. Este é o maior – ou pelo menos o mais abrangente – conceito de existência que posso conceber, embora não possa experimentar a sua natureza, se é que a tem – pelo menos não com os meus sentidos normais. Só há uma existência que posso experimentar, não apenas como vago conceito, mas como vida; não apenas como objeto de pensamento, mas como subjetividade (de subjetum = sujeito) – a minha própria existência. Posso aceder ao meu próprio absoluto, e não apenas pensá-lo, exprimindo-se na minha vida como totalidade existencial cujos focos irredutíveis são o “meu eu” e a “minha circunstância”, em torno dos quais orbitam todo o meu mundo e existência pessoais.

O que quero dizer é que, antes de mais, e acima de tudo, cada um de nós é uma existência que busca cumprir-se no máximo das suas potencialidades, atingir o seu fim. Na base tudo aquilo que podemos humanamente pensar ou sentir, de toda a nossa cultura, de toda a nossa moral, de todos os nossos projetos pessoais, de todos os nossos desejos e aspirações mais banais, está um a priori que é uma pulsão inexorável para ser. Não para ser animal ou objeto, mas para ser pessoa. Tanto quanto sabemos, não há forma de ser mais alta (e sublinho o “tanto quanto sabemos”). E embora ser pessoa seja a nossa aspiração mais elevada, a nossa verdadeira e mais profunda vocação, não lhe conhecemos nem a forma nem o conteúdo exatos. Para que uma pedra ou um gato se “realizem” não é preciso muito. Os limites da sua realização estão bem definidos e determinados à partida. Por outro lado, os limites da pessoa são desconhecidos. O ser humano, enquanto existência que busca cumprir-se, nunca sabe realmente quando a sua luta chegou ao fim, quando atingiu a plenitude do seu ser. Tanto quanto sabemos, podíamos viver mil anos e não ultrapassarmos a condição de existências insatisfeitas, pessoas por cumprir. A questão é esta: será que as coisas poderiam passar-se de outra forma para um ser cujo mais alto pensamento/ideal é o de Deus, o mesmo é dizer, o de Infinito, o de Perfeição existencial? É como se os limites da nossa realização pessoal não estivessem contidos em nós, na nossa condição biológica ou cultural, mas fora de nós. Dito de outro modo, como se só nos pudéssemos realizar completamente fora de nós, isto é, no transcendente – em Deus. Para usar uma imagem, é como se a nossa existência particular fosse um rio que corresse para Deus, desaguando em Deus. Neste sentido, a demanda da personalidade para se cumprir implica necessariamente uma abertura da personalidade particular para, em obediência ao seu mais alto pensamento e à sua mais alta intuição, ir ao encontro dos seus limites, que se coincidem com os limites da Personalidade Ilimitada que lhe coexiste, sendo que esta última contém aquela completamente. É como se na condição humana existisse uma contradição interna que só no Infinito pode ser superada, do mesmo modo que só no Infinito duas rectas paralelas podem esperar encontrar-se alguma vez. E a contradição é possivelmente esta: só no ilimitado (em Deus) a existência da pessoa pode encontrar os seus limites (i.e. cumprir-se plenamente como Pessoa), sendo que o ilimitado, por definição, não tem limites.

Para uma existência cuja essência (i.e., ponto de partida e destino) é ser pessoa, conceber a ideia de Existência Perfeita, de Infinito, de Absoluto (tudo variações do mesmo pensamento), não apenas tem enorme apelo, como ela não pode ser senão concebida como o ideal ético de perfeição ao qual toda existência humana deve aspirar. É evidente que para a maioria a realização deste ideal não cabe na exiguidade temporal de uma vida humana. A origem da ideia da “vida do além” talvez esteja precisamente aqui, na frustração acumulada de gerações e gerações de existências pessoais que falharam em cumprir a promessa de infinito tragicamente anunciada na sua consciência. A promessa de Deus que se renova a cada nova existência que emerge, uma nova aliança a cada novo homem. Seja algures num paraíso celeste, ou no culminar de um ciclo de muitas existências, a existência que busca há-de encontrar os limites da sua perfeição pessoal, de acordo com a promessa do seu mais alto pensamento e sentimento.

Pois, não é demais repetir, e todos temos essa experiência – os limites da pessoa são desconhecidos, situando-se muito para além da mera perfeição animal ou biológica, que com efeito rapidamente se atinge sem grande esforço. Mas, no homem, é esse “acréscimo”, esse “mais-qualquer-coisa” a que chamamos de “espírito” ou “personalidade” que faz toda a diferença, e que o empenha uma vida inteira numa busca por uma outra espécie de realização que está muito para além dos limites da sua biologia.

Heidegger pretendia definir-nos como “seres para a morte”; eu creio que é mais apropriado definir-nos como “seres para Deus”. O que nos “mata” na morte é a hipótese demasiado assustadora de que não haja tempo suficiente para cumprirmos a promessa de Infinito contida na nossa consciência, e que seja aniquilada em nós, demasiado cedo, uma força de vida que, por ter os seus limites em Deus, jamais deve morrer, ou pelo menos não antes de cumprir aquilo que nasceu para ser – uma perfeição chamada Pessoa, a divindade em nós, que é ao mesmo tempo o melhor que a nossa humanidade pode dar, em obediência ao que de mais alto pode pensar e sentir.  

Em conclusão, não sei se é ou não lógico acreditar em Deus. O que sei é que enquanto pessoa que sou, obediente ao apelo da minha vocação mais profunda para me concretizar no máximo da minha personalidade, não posso deixar de estar aberto e disponível para ir ao encontro do que me transcende, espaço ilimitado onde se situa a chave da minha realização, onde repousam as fronteiras do meu ser, impelido apenas pelas possibilidades que posso apenas vagamente entrever através do que posso pensar e sentir de mais elevado – o Absoluto que infinitamente me ultrapassa, e o Belo/Sublime que infinitamente me comove.