A EPISTEMOLOGIA E AS LUTAS PELA SUPREMACIA ENTRE CRITÉRIOS DE VERDADE E JUSTIFICAÇÃO
Toda a ciência é precedida de uma epistemologia. Qualquer disciplina do
pensamento que coloque como fim a descoberta da verdade e, portanto, se aplique
ao estudo e compreensão de um determinado objeto – logo, tenha pretensão à objetividade – baseia-se já, mesmo que
de forma natural e inconsciente, em pressupostos acerca do que se deve entender
por verdade e objetividade. Baseia-se, portanto, numa epistemologia. Isto porque
qualquer ciência com pretensão à objetividade tem também pretensão à
universalidade.
Não faria sentido estabelecer critérios de verdade e de evidência para
uma ciência se esta não pretendesse que os seus resultados fossem objetivos,
verdadeiros e universais. Não fosse a própria epistemologia uma ciência da
verdade, que partilha da mesma pretensão de universalidade de todas as outras
ciências. Pois, existe uma epistemologia da epistemologia? Existe uma
epistemologia da epistemologia que por sua vez está na base da epistemologia?
Onde acaba a ciência da verdade? Existe uma ciência última ou primeira da
verdade que subjaz a todas as outras? Estes debates são muito antigos e
opuseram durante séculos defensores de perspetivas fundacionalistas,
coerentistas, subjetivistas, empiristas, racionalistas, entre outros.
A ciência última, a epistemologia última, dar-nos ia o critério
derradeiro para distinguirmos a verdade da falsidade, a certeza do erro.
Descartes identificou precisamente este critério último de verdade com a
evidência “clara e distinta”. Tudo o que se apresentasse “clara e
distintamente” ao seu espírito deveria ser considerado verdadeiro. No fundo, toda
a certeza que se emergisse claramente, cuja obviedade fosse absolutamente
resistente a qualquer tentativa de refutação, deveria ser considerada
verdadeira, sem mais - como quem diz, sem necessidade de nenhuma justificação
adicional, portanto, auto-evidente -. Se existiam, para Descartes, algumas
verdades deste género, “claras e distintas”, outras porém exigiriam um maior
esforço da razão para conquistar a sua evidência.
O problema de uma epistemologia última (ou primeira) é precisamente o de
ter de se mostrar capaz para produzir critérios de verdade aplicáveis, não só
às outras ciências, mas também a si própria. A epistemologia primeira tem de
ser capaz de se auto-justificar. Tem de produzir critérios de verdade
universais e, ao mesmo tempo, explicar porque é que ela própria é verdadeira
precisamente à luz dos mesmos critérios. Tem não só de estabelecer o que é a verdade, mas também de ser a verdade. Pois, afinal, como será
possível dar crédito a uma ciência com pretensão de verdade se os princípios
nos quais se estabelece não forem verdadeiros? Ora, uma ciência última da
verdade não poderia encontrar a sua justificação noutra ciência mais
fundamental. Não poderia ser verdadeira em função dos critérios estabelecidos
por outra ciência mais radical. Teria de ser verdadeira por si, em si, a priori.
Tal ciência a priori constitui
uma demanda filosófica desde Platão, e talvez mesmo antes com a noção de arké ou de princípio último da realidade visível. Precisamente, procurava-se
desvendar a arké de toda a realidade,
o princípio último que lhe conferia consistência e verdade. Neste sentido, toda
a filosofia e cosmologia começou por ser uma arqueologia, uma ciência do princípio último de tudo o que existe.
Quanto ao mundo físico, ao universo, esse princípio de consistência teria de
material como o próprio mundo.
Porém, e como já os pitagóricos séculos antes de Platão haviam defendido,
tal princípio poderia ser também da ordem do imaterial – o número, a forma
geométrica. As qualidades do mundo seriam, na sua essência mais fundamental, no
seu arké, quantidades geometricamente
dispostas, extensas. O universo seria, portanto, um desdobrar de quantidades
extensivas que partiu, na sua origem, do ponto, logo, da unidade não extensa. A
Platão – certamente um admirador dos pitagóricos – interessava menos a questão
cosmológica da origem do Universo do que a questão do mistério de ser possível
aceder, por via do exercício da razão, às formas últimas da realidade. A razão
parecia constituir uma faculdade quase divina, capaz em última análise de
aceder a um meta-mundo, aquilo que hoje chamaríamos de uma outra dimensão da realidade, precisamente a
dimensão que conferia inteligibilidade à dimensão do mundo físico.
O mundo sensível, só por si, não poderia ser compreendido sem o suporte
da inteligibilidade que um outro mundo mais simples – o mundo das formas puras
– lhe conferia e ao qual a razão, por via do de um exercício que hoje
chamaríamos de abstração, simplificação ou redução, era capaz de aceder. A verdade situava-se, precisamente,
neste meta-mundo de inteligibilidades simples do qual o mundo sensível, no seu
vasto espectro de contrastes, contradições e multiplicidades constituía apenas
uma sombra, uma aparência esbatida e demasiado mutável para constituir, em si
próprio, um mundo de certezas. Para parafrasear um dito muito posterior a
Platão, o reino da verdade não era, de facto, deste mundo.
Os racionalistas, com as devidas variantes
ao longo da história da Filosofia, sempre defenderam a supremacia da razão
enquanto faculdade privilegiada no acesso à verdade. Fosse por via do acesso a
um meta-mundo de inteligibilidades, fosse por via do acesso a ideias inatas da
razão, fosse por via da razão enquanto suporte e sustentáculo da própria
realidade objetiva sem o qual o mundo simplesmente não seria, fosse por via de uma identificação clara entre a realidade e
a razão, ou a razão e a realidade, ou ambas ao mesmo tempo.
Kant e a sua via crítica, ainda que tenha retirado à razão a primazia da
objetividade – a razão não produz objetos nem sequer possui ideias constituídas
acerca do mundo -, continuou a dar-lhe a primazia no processo de constituição
do fenómeno. A razão continua a ser, para Kant, a faculdade que confere
inteligibilidade. É a variável inteligente da equação do conhecimento, sendo
que a sensibilidade, só por si, é “cega” se os seus dados não forem devidamente
organizados pelas categorias a priori do entendimento.
A objetividade, para Kant, não se atinge pelo conhecimento do objeto em si próprio, simplesmente porque
nenhuma faculdade do sujeito é capaz de aceder à mesmidade ontológica da “coisa
em si”. Não existe identificação ontológica entre a razão e a realidade em si do mundo. A relação não é imediata
e privilegiada. É antes mediada, exige adaptação,
tradução, conferência de
inteligibilidade e de ordem aos dados que chegam, desordenados, aos sentidos.
Neste sentido, há um maior grau de subjetividade nesta abordagem, simplesmente
porque se coloca o sujeito na equação como “legislador”.
Em termos gerais, podemos designar
os racionalistas e idealistas enquanto defensores da imediaticidade da verdade, portanto, de uma objetividade
irrestrita. É possível atingir a verdade em
si mesma, na sua essência, não como aparece mas como é enquanto é o que é. A razão não só contém em si própria
algumas destas verdades mas também contém em si os critérios últimos que
permitem decidir acerca do que é verdadeiro e do que é falso. São critérios
sobretudo lógicos, simples e auto-evidentes que, por si mesmos, excluem
qualquer possibilidade de erro. Assim, o mundo exterior, físico, dos sentidos,
tem de se submeter a estes critérios pois o sujeito é precisamente aquele que,
por via da razão, tem acesso ao subjectum
– ao que subjaz, ao que está subjacente, à estrutura do mundo -. O sujeito,
por via da faculdade da razão, transcende o próprio mundo para trazer à
imanência da compreensão a urdidura matemática, lógica, fundamental do mundo.
No idealismo essa transcendência é, ao mesmo tempo, imanência. O mundo ou
certos aspetos dele existem porque eu sou capaz de os produzir, pensar,
idealizar. O mundo existe enquanto eu existir (e mesmo que eu deixe de existir,
Deus há-de garantir que tudo continuará a existir pois ele vê tudo, ao mesmo
tempo, em todos os momentos). As coisas existem enquanto puderem ser alvo da
minha perceção e reflexão (O Esse est
percipi de Berkeley).
Por outro lado, os empiristas
conferem um outro estatuto à razão. Em diferentes graus, o cepticismo derivado
das perspetivas empiristas do conhecimento retiram à razão o seu estatuto de
juiz último da verdade. A verdade não é cognoscível em si, imediatamente, na sua totalidade e dentro dos seus limites
objetivos. Mesmo os princípios lógicos, matemáticos, não constituem a verdade, a estrutura última e
permanente do mundo acessível ao poder da razão, nem sequer podem ser
entendidos como critérios objetivos para decidir definitivamente acerca da
verdade ou da falsidade seja do que for. Não é possível ter contacto direto e
imediato com as essências e formas puras e universais que subjazem aos objetos
do mundo, mas apenas com os vários tipos de sensações que eles despertam quando
o sujeito os percepciona por intermédio dos sentidos.
É a partir deste contacto – sempre parcial, sempre incompleto – com os
objetos do mundo que o conhecimento faz o seu caminho. Neste contexto, não se
pode afirmar que existe sequer uma soberania absoluta da experiência. Para os
empiristas como David Hume, a experiência é, sem si própria limitada, parcial e
incompleta. Não podemos ter acesso à totalidade do mundo que é, como quem diz,
à totalidade da experiência ao mesmo tempo. Ora, daqui se conclui necessariamente
que as nossas crenças acerca do mundo só podem ser provisórias, e qualquer
pretensão à universalidade é perigosa e até, na perspetiva humeana,
“irracional”.
Não existe nenhuma garantia lógica, racional, absoluta e necessária que
confira verdade universal às conclusões obtidas por via da indução. Portanto,
mesmo as verdades da ciência – as leis newtonianas por exemplo – baseiam-se num
princípio que, bem vistas as coisas, não podem ser justificado racionalmente,
pois não é racional fazer previsões ou generalizações matemáticas ou lógicas a
partir de casos particulares da experiência. A simplificação/redução - que para
os racionalistas constituíam os processos de raciocínio que permitiam aceder à
verdade fundamental do universo -, constituem, para os empiristas/céticos,
processos perigosos de generalização/previsão que não possuem qualquer validade
em si próprios, pois a razão por si só não tem qualquer privilégio no acesso à
verdade.
VERDADE – SEMPRE A VERDADE! -, OS VALORES E O DIÁLOGO DA COMPLEXIDADE
Apesar da predominância social e cultural das ciências experimentais,
físicas e matemáticas nos dias de hoje, continua a colocar-se o problema da
verdade e da justificação das nossas crenças. Ainda assim, existe um outro
problema que se vai impondo, hoje mais do que nunca. Não se trata tanto da
dimensão epistemológica ou gnosiológica, mas da questão ética e axiológica.
Pois vejamos: a verdade continua a ser um problema de ordem gnosiológica,
pelo menos para aqueles que se dedicam aprofundadamente à questão – geralmente
os filósofos – e não se satisfazem apenas com a verdade científica,
experimental. A verdade é, hoje, um problema de ordem valorativa, ética, mais
do que nunca.
Aparentemente – e sublinho a aparência – a ciência, pelos seus resultados
extraordinários, pela sua dimensão utilitária e funcional, pelo seu progresso
exponencial - sobretudo no século passado - sem precedentes em toda a História
humana registada, parece ter esvaziado o discurso epistemológico e gnosiológico
acerca da verdade e da objetividade. A ciência funciona, os seus métodos quase
não encontram adversário no espectro das disciplinas do pensamento humano.
Existe de facto um outro critério epistemológico, não já da ordem da evidência,
mas da ordem da utilidade. Esta perspetiva epistemológica acerca da verdade
muito deve ao pragmatismo.
Ao mesmo tempo que a discussão
epistemológica parece ter-se esvaziado, a questão ética e axiológica parece ter
tomado a ribalta. O movimento é curioso por ser o inverso daquele a que a
Europa assistiu na transição da idade média para a modernidade: o esvaziamento
da verdade enquanto dimensão axiológica e moral e a emergência da discussão da
verdade em termos epistemológicos e gnosiológicos. A Igreja e a sua soberania
moral e intelectual – e muitas vezes temporal – estabelecia claramente os
limites da verdade e da falsidade no campo da moralidade. Fazia-o também em
termos de verdade e falsidade cosmológica e filosófica, na medida em que a
crença nos cânones da moralidade dependia de uma fé irrestrita na visão do
mundo oferecida pela igreja e os seus sacerdotes. Tal explica que a perseguição
àqueles que, pela via do conhecimento filosófico, científico e epistemológico
colocaram em causa esta mundivisão, tenha sido tão dura e sem quartel. Se a
igreja e os guardiães da sua doutrina tinham a sua própria epistemologia na
medida em que definiam o critério da fé enquanto critério de verdade, os
filósofos metafísicos e naturais defendiam, por outro lado, o critério da
racionalidade, da observação e experimentação. Assim nasceu o método
científico, precisamente como resposta epistemológica que viria, uns séculos
mais tarde, a submeter a predominância moral da religião sobre os espíritos.
Hoje, essa via da racionalidade
parece ter tomado o seu lugar ao ponto de, em certa medida, se ter tornado
também numa questão de fé com a sua doutrina e a correspondente elite de
guardiães e sacerdotes. A sua predominância é da ordem do intelectual mas,
curiosamente, a maior ameaça a visão do mundo que propõe é da ordem da ética,
da moral e da axiologia. É hoje consensual que é necessário pensar a ciência e
o seu desenvolvimento à luz dos valores da dignidade humana e da democracia,
estabelecendo-lhe limites éticos claros.
Porém, a própria racionalidade científica e tecnológica defende-se
procurando, em muitos momentos, naturalizar, reduzir e simplificar o raciocínio
ético e valorativo atribuindo-lhe uma explicação natural ou naturalista que o
esvazia de conteúdo e de sentido. Neste sentido, a melhor defesa é precisamente
a de impedir a suspensão da reflexão axiológica e ética por via de uma
discussão racional e filosófica permanente que se oponha as tentativas
naturalistas e neopositivistas para terminar, numa penada biologista, com todas
as justificações em detrimento das explicações. Talvez seja mesmo necessária
uma epistemologia da axiologia, ou seja, uma reflexão acerca dos critérios de
verdade e evidência que estão na base de uma filosofia dos valores, do bem e do
mal, do certo e do errado, dos princípios morais e éticos que procuram
responder à questão de Como devemos agir.
A fé na técnica e na racionalidade científica não deve conduzir à
suspensão do pensamento relativamente a outras formas de racionalidade, do
mesmo modo que a fé na doutrina da igreja pressupunha a suspensão da racionalidade
filosófica e naturalista.
Há sempre uma perigosa tendência de tomar a parte pelo todo, de assumir
uma postura totalitária procurando alargar um tipo de metodologia ou
racionalidade que funciona muito bem em certas dimensões muito específicas da
realidade, a todas as dimensões. A racionalidade, como defende Edgar Morin,
pode degenerar em racionalização. A
racionalização é um processo de redução e simplificação que reduz a realidade
complexa, multifacial e multidimensional a uma só dimensão. Há sempre um risco
de um determinado tipo de racionalidade querer assumir uma postura hegemónica
no campo do conhecimento, reduzindo todas as outras abordagens a uma só, como
se esta última estivesse no fundamento de todas as outras e explicasse todos os
fenómenos. Dá-se com as tentativas de reduzir os fenómenos biológicos a
fenómenos físicos, explicáveis numa ou em várias fórmulas físico-matemáticas,
na tentativa de reduzir a discussão ética e moral ao estudo neurocientífico das
estruturas naturais do cérebro, ou no esforço para reduzir o estudo da
consciência e dos processos mentais às ciências da computação ou da
cibernética.
Existe o chamado princípio da complexidade que determina
que a complexidade do real não pode nem deve ser reduzida e simplificada nos
limites fechados de um tipo estrito de racionalidade. O Universo é não só
extremamente complexo como essa complexidade ainda não terminou – e não se sabe
se alguma vez terminará – de se complexificar. Uma só abordagem não pode dar
conta de toda esta simplicidade. Hoje, mais do que nunca, é necessário
estabelecer pontes entre as disciplinas, entre os tipos de racionalidade, entre
os campos do vasto espectro do conhecimento humano.
É verdade que cada tipo de racionalidade, cada disciplina, tem a sua
própria epistemologia e, consequentemente, os seus critérios de verificação ou
falsificação. Porém, é possível e necessário estabelecer uma epistemologia
mínima que só o diálogo racional, aberto e sem preconceitos entre as
disciplinas e racionalidades pode conseguir. Várias epistemologias não
significam que a subjetividade venceu sob a capa de cordeiro da objetividade. Significa
antes que a própria complexidade do real solicita hoje uma redefinição do
conceito de objetividade e subjetividade. Nenhuma ciência pode conter a
totalidade, mas todas juntas, em diálogo estreito e aberto, podem ir desenhando
uma imagem do Universo - não será antes Multiverso? - que se aproxime pouco a
pouco da realidade objetiva, como se todos os campos do conhecimento humano
concorressem, por fim, para um monumental holograma da Verdade.