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domingo, abril 01, 2012

Um enigma esfíngico - a natureza do homem

                                              

Indagar a “natureza” ou “essência” do homem tem sido o mister dos filósofos desde a alvorada da Filosofia. Não será, porém, uma inquietação recente em termos da História humana. É, sim, uma inquietação provavelmente tão velha como a própria humanidade, penetrando na bruma dos tempos dos quais pouca ou nenhuma memória histórica existe. Precisamente esta inquietação - indiciadora ela própria de uma condição própria ao humano -, ao ter estado sempre presente no processo de evolução cultural e civilizacional do homem, influenciou e (in)formou esse mesmo processo. Toda a cultura é, em última instância, símbolo. Todo o símbolo será, em última instância, sentido. “A linguagem é a casa do Ser”, escreve Heidegger. Pois, a cultura e o símbolo serão, para o homem, a casa sempre por terminar do sentido. Do seu sentido. Que relação tem tudo isto com a resposta à perene questão acerca da natureza do homem?

A minha resposta é imediata - tudo. O homem é “homo symbolicus” como propõe Cassirer, e muito bem. Porém, será que isto diz tudo acerca do homem? Será esta a tão fugidia “natureza” do homem? Que o homem é produto e produtor de símbolos e de cultura, parece-nos hoje claro. Que afirmar isto é o mesmo que afirmar que o homem é produtor de sentido e de sentidos, parece-me igualmente claro e legítimo. O que é que isto nos diz acerca natureza humana? Diz-nos que o homem, ao contrário do cão e do gato, da ameba ou do gorila, vem ao mundo sem nunca dele fazer parte completamente. O homem não nasce definido, determinado e em harmonia com a natureza. O homem não traz, inscritas nos seus genes, as finalidades do seu “estar-no-mundo”. Com o corte do cordão umbilical logo após o nascimento corta-se também a ligação com um mundo dado, imediato. Todo o processo de individuação ao longo do crescimento, do desenvolvimento ontogenético dos indivíduos, se faz num progressivo mergulhar num “Eu” que é cada vez mais “Eu” e menos “Mundo”; faz-se, dito por outras palavras, num progressivo mergulhar no símbolo, na estrutura de uma cultura que é, como já vimos, a casa de todos os sentidos.

É desta fratura homem/mundo que nasce toda a vontade de conhecer. O homem não gosta dos factos brutos, do dado puro e simples. A crueza do mundo sem a intermediação do símbolo é para o homem insuportável. O desconhecido é fonte de temor ou de fascínio, nunca de indiferença. O fogo, quando foi visto pela primeira vez por olhos humanos, não pode ter deixado indiferente os seus observadores. Assim, o primeiro passo para dar uma “face humana” ao desconhecido, para lhe dar um lugar na sua “casa de sentidos”, em suma, para o dominar, será o de lhe dar um nome. Poder dizer o mundo, os seus objetos e fenómenos, é como percorrer os corredores de um casarão no qual nunca se esteve, mergulhado no silêncio e na escuridão, e começar a falar alto como se o som da própria voz pudesse aliviar o temor do desconhecido.

Neste contexto, o objetivo da palavra enquanto veículo de significados, enquanto símbolo, sempre serviu para humanizar o mundo. Humanizar o mundo é dar-lhe um sentido humano, é aproximá-lo do homem no sentido de restabelecer a conexão perdida, o elo quebrado entre o homem e a natureza; dito de outra forma, entre o homem e o Sentido. Aqui talvez possamos estabelecer o nexo entre mito e cultura, entre religião e sentido. O mito, enquanto expressão de cultura, enquanto humanização do transcendente ou transcendentalização do humano, mais não é do que a expressão de um esforço para “religar”, restabelecer a ligação, ideia que estaria expressa originalmente no étimo latino de religião.

A noção de queda, de “pecado original”, de “idade de ouro”, está patente na maior parte dos mitos e religiões do mundo. O sentido é curioso e paradigmático: a queda é sempre um derivar negativo do conhecimento para o desconhecimento, da certeza para a incerteza, da plenitude para a incompletude. Antes de comerem o pomo da árvore do conhecimento oferecido pela serpente, nem Eva nem Adão se haviam questionado acerca da sua nudez ou do seu lugar bem estabelecido por Deus no paraíso. O comer da maça teve o condão de lhes abrir os olhos e os ouvidos para a sua condição. Teve o efeito de um renascimento, de um novo acordar, não para a perfeição divina mas para a imperfeição e incompletude humanas. A expulsão do paraíso é o exílio da certeza. Será, em última análise, o degredo onde a incerteza e a dúvida tomam o lugar da certeza e da sabedoria. Sabedoria que não significa a possessão de todo o saber, mas a ignorância da ignorância quanto ao muito que não se sabe.

Não é possível afirmar com certeza se alguma vez essa pretensa “harmonia” ou “idade dourada” existiu. Talvez nunca tenha existido. Talvez o homem, desde que é homem, tenha estado sempre em desacordo, sempre em desarmonia, e talvez essa desarmonia tenha aberto a porta para todas as conquistas culturais e civilizacionais. Não sabemos. Mas a questão da natureza do homem permanece. Pois, qual então a natureza do homem?

Hoje, depois de centenas de milhares de anos de evolução e involução, de civilização e barbárie, de história escrita e – talvez não menos importante – de história não-escrita, ainda não existe resposta à questão acerca da natureza do homem. O problema será, talvez, paradoxal. Muitas foram as tentativas de resposta ao longo de toda a História, mas nenhuma foi suficientemente duradoura e consensual para servir de modelo final. Cada cultura, como vimos, é uma casa de sentidos, e portanto cada momento da história, cada época, cada civilização ou sociedade inventou para si um modelo de homem, um propósito e uma finalidade. A “natureza” do homem, quando pretensamente compreendida e conquistada, serviu quase sempre como instrumento para propósitos políticos mais ou menos bem intencionados. Então, qual a natureza do homem?

O homem, como declara Cassirer na obra Ensaio sobre o Homem, é um ser que está constantemente em busca de si próprio. Eu diria, portanto, que em termos de especificidade do homem enquanto espécie animal, o questionar-se acerca da sua própria natureza é um aspeto fundamental. Contudo, só se questiona acerca de si mesmo quem anda perdido de si mesmo. A mutabilidade das definições de homem, da cultura no seu todo, o relativismo cultural, a falta de referências em termos civilizacionais, éticos e axiológicos, é o caldo de onde brota todo o questionar fundamental do homem acerca de si mesmo. Quando questiona a sua própria natureza do modo mais radical, o homem procura um Sentido para além do sentido. Um “algo” com pretensão de universalidade que não esteja sujeito ao devir e à mutabilidade de um mundo simbólico, cultural e, portanto, artificial. Porém, nenhum homem está para além ou é extemporâneo à sua própria circunstância. Procurar dar uma resposta acerca da natureza humana, ainda que com pretensão de universalidade, é ainda fazê-lo através de uma cultura, de uma estrutura histórica de símbolos e significados. Talvez nunca venhamos a saber se existe uma natureza humana para além do “véu de Maya” da cultura que o homem produz para si mesmo, para além da mobília com que, por necessidade de sentido, o homem vai mobilando a “casa do ser” onde habita.

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