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sexta-feira, novembro 02, 2012

Da humanidade do homem




É preciso devolver o homem à sua humanidade. É preciso inventar um novo significado para o ideal de progresso, tal que não mais seja sinónimo de alienação e desvinculação do homem em relação a si próprio, mas antes de re-humanização. Este caminho faz-se, em primeiro lugar, pelo reconhecimento do lugar do homem nas sociedade atuais, bem como das forças que o ultrapassam e inclusive se autonomizam relativamente ao seu poder, adquirindo um carácter de inexorabilidade que pouco a pouco despedaçam, fragmentam, instrumentalizam o homem.

O homem torna-se vítima das forças que ele próprio, pela sua ação, despoleta. O homem é o coveiro da sua própria humanidade, e mais ninguém. Tal não seria possível se o homem não fosse capaz de pôr em marcha forças que estão para além da sua humanidade, que a ultrapassam largamente ao ponto de poderem subvertê-la e destruí-la. O homem está com um pé dentro e outro fora da sua humanidade. É quando o homem perde o controlo que a humanidade está em perigo. É precisamente esta a mensagem do mito antigo de Pandora: podemos abrir a caixa, está ao alcance do nosso poder e por isso fazemo-lo. Já não podemos estar certos de que seremos capaz de enfrentar as forças que libertarmos, de controlar e eliminar o mal que pusermos irrefletidamente em marcha, e que mais tarde ou mais cedo pode voltar-se contra nós.

A verdade é que o homem tem esse poder, e ao tê-lo revela algo da sua própria humanidade. Pois, não acredito numa humanidade essencial diversa deste poder humano de se superar. Não é o retorno de um hipotético bom selvagem que pretendo defender, nem sequer fazer uma apologia sempre perigosamente maniqueísta e até ignorante de um retorno ao paraíso pré-industrial, ou pré-técnico. Tal seria um outro modo de desvinculação do homem relativamente à sua humanidade, outra forma de alienação. É constitutiva da natureza do homem a capacidade de criar, de inovar, de cultivar (no sentido de cultura), e até, num certo sentido, de manipular a natureza numa perspetiva utilitária. A agricultura, só para dar um exemplo simples, é já uma forma de manipulação, de colocar a natureza ao serviço do homem. Assim, faz também parte da humanidade do homem a prerrogativa da sua contínua superação, da sua reinvenção permanente por via da cultura nas suas mais diversas expressões. Portanto, não se trata aqui de conduzir o homem de volta a uma pretensa natureza objetiva, determinada a priori, aprisionando-o numa prisão ideológica (que é uma outra forma de alienação). O desafio é antes o seguinte: preservar a humanidade do homem, a sua capacidade de (se)criar, de inventar, de produzir cultura, sem que as forças postas em marcha neste processo se autonomizem a tal ponto que fujam irremediavelmente do seu controlo e acabem por espezinhá-lo.

É preciso aceitar que todo o projeto humano é um projeto de risco. O próprio homem, enquanto projeto, está sempre em risco de se desumanizar. Um ideal político, um projeto científico ou tecnológico, um ideal filosófico, contêm sempre um potencial de subversão, de desumanização. É sempre difícil prever as consequências últimas de uma nova ideia, mesmo quando as intenções de quem a propõe são as melhores possíveis. Não se pode, porém, eliminar ou suprimir este risco. Não há como impedir o homem de ter ideias, de criar, de inovar. Melhor dito: há como impedir por via da mordaça política, de um totalitarismo ou de uma qualquer espécie de terror de estado.

Os totalitarismos são precisamente exemplos de regimes vocacionados única e exclusivamente para manter o homem na infância, para o desumanizar transformando-o num funcionário ao serviço de um quadro de ideias e de valores que não são os dele, que lhe são impostos, que o impedem de se constituir como projeto autónomo. O perigo de qualquer totalitarismo desumanizador é precisamente o de afirmar um rumo, implementar e pôr em marcha uma ideia, um pensamento único que não admite contraditório, e que determina muito bem o lugar e a função do indivíduo no corpo social, isentando-o de pensar ou sequer de se responsabilizar para além do estritamente necessário ao seu cumprimento. De facto, numa sociedade deste tipo o risco não existe. Todas as ideias que não emanem do núcleo duro da classe dirigente são severamente escrutinadas e, até prova em contrário, heréticas. Ao indivíduo não se lhe reconhece nenhuma capacidade criadora, inventiva, inovadora para além dos cânones muito restritos que a ortodoxia determina, e se reconhece, olha-a apenas como um instrumento útil para fins de propaganda.

Suprimir o risco de qualquer empreendimento humano, individual ou colectivo, suprimindo a própria capacidade de pensar e de ter ideias, é expropriar o homem daquilo que ele tem e pode fazer de melhor, por receio do que ele possa fazer de pior. O pessimismo do homem em relação a si próprio é talvez uma das maiores ameaças à sua humanidade. É preciso acreditar que o homem pode fazer o bem, pode construir e não apenas destruir, pode ser humano, caso contrário qualquer projeto de humanização do homem está condenado ao fracasso. Seja por via da educação, seja por via da ação política, a desconfiança relativamente às possibilidades humanas não é capaz de construir a autonomia, de abrir espaços de liberdade a partir dos quais cada homem possa criar, inovar, pensar, agir a partir de um projeto próprio. É preciso cultivar o otimismo no homem para que ele tenha espaço suficiente para ser, sem que a espada de Damócles da heresia e da subversão pairem constantemente na sua cabeça.

sexta-feira, outubro 05, 2012

O CALVÁRIO DA REPÚBLICA



Hoje, durante o astear da bandeira nas comemorações do 5 de outubro.
Não é a bandeira que está ao contrário, mas antes Portugal inteiro que está a fazer o pino para fazer o dinheiro chegar ao fim do mês. 



A república está moribunda. Está ferida, doente, anémica, pálida, incapaz de se sustentar, de cumprir as suas promessas. A república está refém dos erros de todos aqueles que absolutizaram a liberdade e relativizaram a responsabilidade em todos os domínios da "coisa pública" - político, económico, moral -. A república é hoje uma mulher mal amada, e sobre cujas vestes - já de si esfarrapadas - foram tiradas sortes. Como noutros tempos, muitos ou quase todos gritam desalmados "crucifiquem-na!", "crucifiquem-na, pois ela não cumpriu as suas promessas de paraíso! O reino não veio como ela prometeu!".

Porque não sabem o que fazem, vão acabar por crucificá-la: como sempre, a mensageira perece como bode expiatório dos pecados de todos nós. Não foi a república que não cumpriu as suas promessas: fomos nós, todos nós, que a levamos ao calvário por causa dos nossos pecados. A república pressupõe a gestão da coisa pública, ou seja, a administração dos espaços comuns baseada em valores comuns, para o benefício de todos. A democracia, pressupõe que esta gestão se faça pelos cidadãos, diretamente ou por via dos seus representantes eleitos. Ora, se a "res pública" degenerou em "res privada", também a democracia parece ter degenerado em partidocracias e "cracias" várias, pelo que o divórcio é flagrante entre os centros de decisão e os cidadãos.

Os gestores da coisa pública, na sua maioria, já não representam: apenas se representam. Mas a culpa não é apenas "dos políticos"; é também, e sobretudo, dos cidadãos ao terem permitido este divórcio, por andarem distraídos com a sua "individual, subjetiva e absoluta felicidade". Ninguém se deve esquecer que o seu espaço privado não existe por si só, isolado e insular. É antes peninsular, está ligado inexoravelmente ao continente do espaço público, para o bem e para o mal. A minha família, a minha "felicidade" está inextrincavelmente ligada ao sucesso e à felicidade dos outros.

A emancipação do individual não se faz à custa da opressão do coletivo, nem a emancipação do coletivo à custa da opressão individual. O liberalismo político - essa grande conquista da modernidade -, trouxe a intenção de uma emancipação do indivíduo, política, civil e económica. Mas toda a revolução - por mais bem intencionada - atrai a sua conta de oportunistas da "pior espécie", como bem defendia Carlyle. Logo, a "emancipação" foi tomada como absoluto, em si mesma. Alguns, a bem da sua emancipação, da sua "felicidade", acharam legitimo e pertinente relativizar a "felicidade" dos outros, como quem diz, colocá-la ao serviço da sua "soberana liberdade".

A liberdade, que começou por ser vista enquanto "liberdade objetiva do sujeito" - inalienável portanto do respeito pelo outro enquanto "fim em si mesmo" - , degenerou naquilo a que se chama hoje muito prosaicamente de "liberdade individual", que mais não é do que a absolutização da liberdade subjetiva. Aquilo que Valadier diz, neste contexto, faz todo o sentido: relativizamos os valores que os outros defendem, mas absolutizamos os nossos. Relegamos os valores dos outros para o reino da subjetividade - é a "tua" opinião -, mas queremos que os valores que defendemos sejam tomados universalmente, mesmo que digamos "é apenas a minha opinião...". Intimamente pensamos, "eu estou correto, e ele está errado."

A democracia e a república só sobrevivem se os indivíduos, na sua subjetividade legítima, se voltarem para fora desta mesma subjetividade. Se é verdade que o indivíduo se emancipou da opressão exterior dos absolutos políticos, religiosos ou outros, também é verdade que existe um absoluto do qual este ainda não se emancipou - o absoluto relativismo do "eu próprio".

Não é que não seja necessária uma cultura do indivíduo. Nenhum de nós está disposto a abdicar - justamente - da sua personalidade jurídica, dos seus direitos consagrados, da sua liberdade e autonomia, do reduto intocável da sua consciência, do primado do fundamento radical da sua liberdade. Justíssimo, desde que sejamos capazes de reconhecer, nos outros, a mesma personalidade, a mesma liberdade e a mesma autonomia - ou pelo menos o seu potencial de autonomia -. Nem sempre estamos prontos a reconhecê-la, pois tal reconhecimento traz consigo um quadro de deveres e obrigações. Os deveres e as obrigações forçam-nos - por vezes preguiçosamente como quem tem preguiça de se levantar da cama - à exteriorização, à saída de nós próprios e do nosso "ego de conforto". Obriga a um empenho relativamente à "coisa pública", a um ou a vários compromissos, não apenas para connosco, com este ou aquele homem, mas para com a humanidade.

A decadência de qualquer civilização ou sociedade começa precisamente quando o nível de compromisso para com os deveres atinge o seu mínimo. Não digo que o compromisso com os direitos não seja também importante. É-o muitas vezes absolutamente fundamental, sobretudo quando esta decadência civilizacional traz consigo a opressão de alguns sobre muitos. Porém, essa mesma opressão é sinónimo de uma decadência: a do compromisso do agente público, do político, para com as suas obrigações e deveres "públicos".

sábado, setembro 29, 2012

EPISTEMOLOGIA E O HOLOGRAMA DA VERDADE







A EPISTEMOLOGIA E AS LUTAS PELA SUPREMACIA ENTRE CRITÉRIOS DE   VERDADE E JUSTIFICAÇÃO

Toda a ciência é precedida de uma epistemologia. Qualquer disciplina do pensamento que coloque como fim a descoberta da verdade e, portanto, se aplique ao estudo e compreensão de um determinado objeto – logo, tenha pretensão à objetividade – baseia-se já, mesmo que de forma natural e inconsciente, em pressupostos acerca do que se deve entender por verdade e objetividade. Baseia-se, portanto, numa epistemologia. Isto porque qualquer ciência com pretensão à objetividade tem também pretensão à universalidade.
Não faria sentido estabelecer critérios de verdade e de evidência para uma ciência se esta não pretendesse que os seus resultados fossem objetivos, verdadeiros e universais. Não fosse a própria epistemologia uma ciência da verdade, que partilha da mesma pretensão de universalidade de todas as outras ciências. Pois, existe uma epistemologia da epistemologia? Existe uma epistemologia da epistemologia que por sua vez está na base da epistemologia? Onde acaba a ciência da verdade? Existe uma ciência última ou primeira da verdade que subjaz a todas as outras? Estes debates são muito antigos e opuseram durante séculos defensores de perspetivas fundacionalistas, coerentistas, subjetivistas, empiristas, racionalistas, entre outros.
A ciência última, a epistemologia última, dar-nos ia o critério derradeiro para distinguirmos a verdade da falsidade, a certeza do erro. Descartes identificou precisamente este critério último de verdade com a evidência “clara e distinta”. Tudo o que se apresentasse “clara e distintamente” ao seu espírito deveria ser considerado verdadeiro. No fundo, toda a certeza que se emergisse claramente, cuja obviedade fosse absolutamente resistente a qualquer tentativa de refutação, deveria ser considerada verdadeira, sem mais - como quem diz, sem necessidade de nenhuma justificação adicional, portanto, auto-evidente -. Se existiam, para Descartes, algumas verdades deste género, “claras e distintas”, outras porém exigiriam um maior esforço da razão para conquistar a sua evidência.
O problema de uma epistemologia última (ou primeira) é precisamente o de ter de se mostrar capaz para produzir critérios de verdade aplicáveis, não só às outras ciências, mas também a si própria. A epistemologia primeira tem de ser capaz de se auto-justificar. Tem de produzir critérios de verdade universais e, ao mesmo tempo, explicar porque é que ela própria é verdadeira precisamente à luz dos mesmos critérios. Tem não só de estabelecer o que é a verdade, mas também de ser a verdade. Pois, afinal, como será possível dar crédito a uma ciência com pretensão de verdade se os princípios nos quais se estabelece não forem verdadeiros? Ora, uma ciência última da verdade não poderia encontrar a sua justificação noutra ciência mais fundamental. Não poderia ser verdadeira em função dos critérios estabelecidos por outra ciência mais radical. Teria de ser verdadeira por si, em si, a priori.
Tal ciência a priori constitui uma demanda filosófica desde Platão, e talvez mesmo antes com a noção de arké ou de princípio último da realidade visível. Precisamente, procurava-se desvendar a arké de toda a realidade, o princípio último que lhe conferia consistência e verdade. Neste sentido, toda a filosofia e cosmologia começou por ser uma arqueologia, uma ciência do princípio último de tudo o que existe. Quanto ao mundo físico, ao universo, esse princípio de consistência teria de material como o próprio mundo.
Porém, e como já os pitagóricos séculos antes de Platão haviam defendido, tal princípio poderia ser também da ordem do imaterial – o número, a forma geométrica. As qualidades do mundo seriam, na sua essência mais fundamental, no seu arké, quantidades geometricamente dispostas, extensas. O universo seria, portanto, um desdobrar de quantidades extensivas que partiu, na sua origem, do ponto, logo, da unidade não extensa. A Platão – certamente um admirador dos pitagóricos – interessava menos a questão cosmológica da origem do Universo do que a questão do mistério de ser possível aceder, por via do exercício da razão, às formas últimas da realidade. A razão parecia constituir uma faculdade quase divina, capaz em última análise de aceder a um meta-mundo, aquilo que hoje chamaríamos de uma outra dimensão da realidade, precisamente a dimensão que conferia inteligibilidade à dimensão do mundo físico.
O mundo sensível, só por si, não poderia ser compreendido sem o suporte da inteligibilidade que um outro mundo mais simples – o mundo das formas puras – lhe conferia e ao qual a razão, por via do de um exercício que hoje chamaríamos de abstração, simplificação ou redução, era capaz de aceder. A verdade situava-se, precisamente, neste meta-mundo de inteligibilidades simples do qual o mundo sensível, no seu vasto espectro de contrastes, contradições e multiplicidades constituía apenas uma sombra, uma aparência esbatida e demasiado mutável para constituir, em si próprio, um mundo de certezas. Para parafrasear um dito muito posterior a Platão, o reino da verdade não era, de facto, deste mundo.
            Os racionalistas, com as devidas variantes ao longo da história da Filosofia, sempre defenderam a supremacia da razão enquanto faculdade privilegiada no acesso à verdade. Fosse por via do acesso a um meta-mundo de inteligibilidades, fosse por via do acesso a ideias inatas da razão, fosse por via da razão enquanto suporte e sustentáculo da própria realidade objetiva sem o qual o mundo simplesmente não seria, fosse por via de uma identificação clara entre a realidade e a razão, ou a razão e a realidade, ou ambas ao mesmo tempo.
Kant e a sua via crítica, ainda que tenha retirado à razão a primazia da objetividade – a razão não produz objetos nem sequer possui ideias constituídas acerca do mundo -, continuou a dar-lhe a primazia no processo de constituição do fenómeno. A razão continua a ser, para Kant, a faculdade que confere inteligibilidade. É a variável inteligente da equação do conhecimento, sendo que a sensibilidade, só por si, é “cega” se os seus dados não forem devidamente organizados pelas categorias a priori do entendimento.
A objetividade, para Kant, não se atinge pelo conhecimento do objeto em si próprio, simplesmente porque nenhuma faculdade do sujeito é capaz de aceder à mesmidade ontológica da “coisa em si”. Não existe identificação ontológica entre a razão e a realidade em si do mundo. A relação não é imediata e privilegiada. É antes mediada, exige adaptação, tradução, conferência de inteligibilidade e de ordem aos dados que chegam, desordenados, aos sentidos. Neste sentido, há um maior grau de subjetividade nesta abordagem, simplesmente porque se coloca o sujeito na equação como “legislador”.
            Em termos gerais, podemos designar os racionalistas e idealistas enquanto defensores da imediaticidade da verdade, portanto, de uma objetividade irrestrita. É possível atingir a verdade em si mesma, na sua essência, não como aparece mas como é enquanto é o que é. A razão não só contém em si própria algumas destas verdades mas também contém em si os critérios últimos que permitem decidir acerca do que é verdadeiro e do que é falso. São critérios sobretudo lógicos, simples e auto-evidentes que, por si mesmos, excluem qualquer possibilidade de erro. Assim, o mundo exterior, físico, dos sentidos, tem de se submeter a estes critérios pois o sujeito é precisamente aquele que, por via da razão, tem acesso ao subjectum – ao que subjaz, ao que está subjacente, à estrutura do mundo -. O sujeito, por via da faculdade da razão, transcende o próprio mundo para trazer à imanência da compreensão a urdidura matemática, lógica, fundamental do mundo. No idealismo essa transcendência é, ao mesmo tempo, imanência. O mundo ou certos aspetos dele existem porque eu sou capaz de os produzir, pensar, idealizar. O mundo existe enquanto eu existir (e mesmo que eu deixe de existir, Deus há-de garantir que tudo continuará a existir pois ele vê tudo, ao mesmo tempo, em todos os momentos). As coisas existem enquanto puderem ser alvo da minha perceção e reflexão (O Esse est percipi de Berkeley).
            Por outro lado, os empiristas conferem um outro estatuto à razão. Em diferentes graus, o cepticismo derivado das perspetivas empiristas do conhecimento retiram à razão o seu estatuto de juiz último da verdade. A verdade não é cognoscível em si, imediatamente, na sua totalidade e dentro dos seus limites objetivos. Mesmo os princípios lógicos, matemáticos, não constituem a verdade, a estrutura última e permanente do mundo acessível ao poder da razão, nem sequer podem ser entendidos como critérios objetivos para decidir definitivamente acerca da verdade ou da falsidade seja do que for. Não é possível ter contacto direto e imediato com as essências e formas puras e universais que subjazem aos objetos do mundo, mas apenas com os vários tipos de sensações que eles despertam quando o sujeito os percepciona por intermédio dos sentidos.
É a partir deste contacto – sempre parcial, sempre incompleto – com os objetos do mundo que o conhecimento faz o seu caminho. Neste contexto, não se pode afirmar que existe sequer uma soberania absoluta da experiência. Para os empiristas como David Hume, a experiência é, sem si própria limitada, parcial e incompleta. Não podemos ter acesso à totalidade do mundo que é, como quem diz, à totalidade da experiência ao mesmo tempo. Ora, daqui se conclui necessariamente que as nossas crenças acerca do mundo só podem ser provisórias, e qualquer pretensão à universalidade é perigosa e até, na perspetiva humeana, “irracional”.
Não existe nenhuma garantia lógica, racional, absoluta e necessária que confira verdade universal às conclusões obtidas por via da indução. Portanto, mesmo as verdades da ciência – as leis newtonianas por exemplo – baseiam-se num princípio que, bem vistas as coisas, não podem ser justificado racionalmente, pois não é racional fazer previsões ou generalizações matemáticas ou lógicas a partir de casos particulares da experiência. A simplificação/redução - que para os racionalistas constituíam os processos de raciocínio que permitiam aceder à verdade fundamental do universo -, constituem, para os empiristas/céticos, processos perigosos de generalização/previsão que não possuem qualquer validade em si próprios, pois a razão por si só não tem qualquer privilégio no acesso à verdade.
           

  VERDADE – SEMPRE A VERDADE! -, OS VALORES E O DIÁLOGO DA COMPLEXIDADE


Apesar da predominância social e cultural das ciências experimentais, físicas e matemáticas nos dias de hoje, continua a colocar-se o problema da verdade e da justificação das nossas crenças. Ainda assim, existe um outro problema que se vai impondo, hoje mais do que nunca. Não se trata tanto da dimensão epistemológica ou gnosiológica, mas da questão ética e axiológica.
Pois vejamos: a verdade continua a ser um problema de ordem gnosiológica, pelo menos para aqueles que se dedicam aprofundadamente à questão – geralmente os filósofos – e não se satisfazem apenas com a verdade científica, experimental. A verdade é, hoje, um problema de ordem valorativa, ética, mais do que nunca.
Aparentemente – e sublinho a aparência – a ciência, pelos seus resultados extraordinários, pela sua dimensão utilitária e funcional, pelo seu progresso exponencial - sobretudo no século passado - sem precedentes em toda a História humana registada, parece ter esvaziado o discurso epistemológico e gnosiológico acerca da verdade e da objetividade. A ciência funciona, os seus métodos quase não encontram adversário no espectro das disciplinas do pensamento humano. Existe de facto um outro critério epistemológico, não já da ordem da evidência, mas da ordem da utilidade. Esta perspetiva epistemológica acerca da verdade muito deve ao pragmatismo.
            Ao mesmo tempo que a discussão epistemológica parece ter-se esvaziado, a questão ética e axiológica parece ter tomado a ribalta. O movimento é curioso por ser o inverso daquele a que a Europa assistiu na transição da idade média para a modernidade: o esvaziamento da verdade enquanto dimensão axiológica e moral e a emergência da discussão da verdade em termos epistemológicos e gnosiológicos. A Igreja e a sua soberania moral e intelectual – e muitas vezes temporal – estabelecia claramente os limites da verdade e da falsidade no campo da moralidade. Fazia-o também em termos de verdade e falsidade cosmológica e filosófica, na medida em que a crença nos cânones da moralidade dependia de uma fé irrestrita na visão do mundo oferecida pela igreja e os seus sacerdotes. Tal explica que a perseguição àqueles que, pela via do conhecimento filosófico, científico e epistemológico colocaram em causa esta mundivisão, tenha sido tão dura e sem quartel. Se a igreja e os guardiães da sua doutrina tinham a sua própria epistemologia na medida em que definiam o critério da fé enquanto critério de verdade, os filósofos metafísicos e naturais defendiam, por outro lado, o critério da racionalidade, da observação e experimentação. Assim nasceu o método científico, precisamente como resposta epistemológica que viria, uns séculos mais tarde, a submeter a predominância moral da religião sobre os espíritos.
            Hoje, essa via da racionalidade parece ter tomado o seu lugar ao ponto de, em certa medida, se ter tornado também numa questão de fé com a sua doutrina e a correspondente elite de guardiães e sacerdotes. A sua predominância é da ordem do intelectual mas, curiosamente, a maior ameaça a visão do mundo que propõe é da ordem da ética, da moral e da axiologia. É hoje consensual que é necessário pensar a ciência e o seu desenvolvimento à luz dos valores da dignidade humana e da democracia, estabelecendo-lhe limites éticos claros.
Porém, a própria racionalidade científica e tecnológica defende-se procurando, em muitos momentos, naturalizar, reduzir e simplificar o raciocínio ético e valorativo atribuindo-lhe uma explicação natural ou naturalista que o esvazia de conteúdo e de sentido. Neste sentido, a melhor defesa é precisamente a de impedir a suspensão da reflexão axiológica e ética por via de uma discussão racional e filosófica permanente que se oponha as tentativas naturalistas e neopositivistas para terminar, numa penada biologista, com todas as justificações em detrimento das explicações. Talvez seja mesmo necessária uma epistemologia da axiologia, ou seja, uma reflexão acerca dos critérios de verdade e evidência que estão na base de uma filosofia dos valores, do bem e do mal, do certo e do errado, dos princípios morais e éticos que procuram responder à questão de Como devemos agir.
A fé na técnica e na racionalidade científica não deve conduzir à suspensão do pensamento relativamente a outras formas de racionalidade, do mesmo modo que a fé na doutrina da igreja pressupunha a suspensão da racionalidade filosófica e naturalista.
Há sempre uma perigosa tendência de tomar a parte pelo todo, de assumir uma postura totalitária procurando alargar um tipo de metodologia ou racionalidade que funciona muito bem em certas dimensões muito específicas da realidade, a todas as dimensões. A racionalidade, como defende Edgar Morin, pode degenerar em racionalização. A racionalização é um processo de redução e simplificação que reduz a realidade complexa, multifacial e multidimensional a uma só dimensão. Há sempre um risco de um determinado tipo de racionalidade querer assumir uma postura hegemónica no campo do conhecimento, reduzindo todas as outras abordagens a uma só, como se esta última estivesse no fundamento de todas as outras e explicasse todos os fenómenos. Dá-se com as tentativas de reduzir os fenómenos biológicos a fenómenos físicos, explicáveis numa ou em várias fórmulas físico-matemáticas, na tentativa de reduzir a discussão ética e moral ao estudo neurocientífico das estruturas naturais do cérebro, ou no esforço para reduzir o estudo da consciência e dos processos mentais às ciências da computação ou da cibernética.
            Existe o chamado princípio da complexidade que determina que a complexidade do real não pode nem deve ser reduzida e simplificada nos limites fechados de um tipo estrito de racionalidade. O Universo é não só extremamente complexo como essa complexidade ainda não terminou – e não se sabe se alguma vez terminará – de se complexificar. Uma só abordagem não pode dar conta de toda esta simplicidade. Hoje, mais do que nunca, é necessário estabelecer pontes entre as disciplinas, entre os tipos de racionalidade, entre os campos do vasto espectro do conhecimento humano.
É verdade que cada tipo de racionalidade, cada disciplina, tem a sua própria epistemologia e, consequentemente, os seus critérios de verificação ou falsificação. Porém, é possível e necessário estabelecer uma epistemologia mínima que só o diálogo racional, aberto e sem preconceitos entre as disciplinas e racionalidades pode conseguir. Várias epistemologias não significam que a subjetividade venceu sob a capa de cordeiro da objetividade. Significa antes que a própria complexidade do real solicita hoje uma redefinição do conceito de objetividade e subjetividade. Nenhuma ciência pode conter a totalidade, mas todas juntas, em diálogo estreito e aberto, podem ir desenhando uma imagem do Universo - não será antes Multiverso? - que se aproxime pouco a pouco da realidade objetiva, como se todos os campos do conhecimento humano concorressem, por fim, para um monumental holograma da Verdade. 

domingo, setembro 23, 2012

Neurobiologia e ética - o totalitarismo do "empiricamente objetivável"





A propósito do artigo intitulado As raízes neurobiológicas da justiça, publicado num blog relacionado com as neurociências (http://jus.com.br/revista/texto/22670/as-raizes-neurobiologicas-da-justica#ixzz27Ivt75n8), achei por bem tecer algumas considerações que me parecem pertinentes no sentido de introduzir alguma prudência na tentativa "empírica" de justificar a condição ética do ser humano. 


"Já há indícios de alguma disposição para estabelecer um debate entre as ciências que se ocupam do cérebro e da conduta e a tradição dos filósofos e teóricos do direito, no sentido de admitir que a partir da aceitação dos melhores dados disponíveis acerca de como são os seres humanos será possível reconstruir, sobre bases empiricamente mais sólidas e seguras, os fundamentos do direito, da justiça e da moral." Portanto, estes senhores propõem que se assentem as bases do direito, segundo compreendi, em "bases empiricamente mais sólidas e seguras" de "como são os seres humanos".

Aquilo que eu pergunto é o seguinte: o que significa neste contexto o "ser", a "natureza" humana que se pretende empiricamente desvendar? Pois, eu também defendo que, no limite, a posse do conhecimento acerca da "natureza" humana nos daria uma base segura para respondermos à questão de "como devemos viver". Não sou porém tão otimista como estes senhores ao defender que tal natureza seja objetivável por via da investigação empírica, científica, biológica. O ser humano - é triste que tenha de lembrar sobretudo aqueles que defendem uma perspetiva evolucionista - é o animal menos determinado em termos biológicos. A genética, ainda que tenha um papel estruturador básico, não determina definitivamente aspetos tão simples como a língua que falamos, as nossas crenças, o nosso agir perante a contingência do mundo. Mais: precisamente essa indeterminação permitiu-nos enfrentar e superar a contingência, ao oferecer-nos instrumentos de resposta adaptativa perante a imprevisibilidade e a mutabilidade do mundo, sempre prenhe de desafios à sobrevivência. Assim - e já Piaget o tinha afirmado e muito bem - as nossas estruturas cognitivas e morais desenvolvem-se numa relação irredutível a qualquer uma das partes: meio ambiente (mundo), genética e ação do indivíduo no mundo.

A que chamam os neurobiólogos, portanto, de "natureza humana"? Essa mesma que pode e deve ser "empiricamente objetivável"? À genética "a priori", chamemos assim, ou às estruturas cerebrais de um adulto formado? Vejamos o que diz o artigo:

"Ernst Fehr e seus colaboradores (2002) estudaram esta questão explorando os cérebros de sujeitos mediante a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) enquanto estes decidiam se castigar a uma pessoa que havia abusado previamente de sua confiança violando uma norma justa. O estudo demonstrou que a parte do cérebro crucial no circuito da recompensa ou gratificação se ativa enquanto os sujeitos estão decidindo se castigar ou não. Pesquisadores anteriores demonstraram que esta mesma área se ativa quando, por exemplo, os sujeitos recebem dinheiro, vêem caras formosas, consomem cocaína ou no caso de indivíduos enamorados ao ver imagens de seus amados ou amadas."

Partindo da tomografia de um cérebro adulto - com as estruturas já formadas ou na fase mais avançada da sua formação - os cientistas concluíram - vejam bem! - que a resposta cerebral ao ato de condenar ou castigar alguém por ter violado uma regra comunitária considerada por todos como "justa" é uma resposta de satisfação ou reforço positivo, semelhante ao que se passa quando consumimos uma droga, ou quando estamos com a pessoa que amamos ou - acrescento eu - quando nos congratulam por algo que fizemos corretamente. O que diz isto acerca da justiça ou dos seus princípios? Em primeiro lugar, trata-se de um adulto já formado e, portanto, não compreendo porque parecem menosprezar ou esquecer todo o processo de socialização e de estruturação construtivista que já se deu ao longo do processo de desenvolvimento. Por outro lado, se o mesmo se passa quando comemos chocolate ou consumimos uma droga, então tal significa que a nossa "natureza" já possui em si as estruturas a priori para apreciarmos "aquele" chocolate em particular ou para nos sentirmos bem com "aquela" pessoa por quem nos apaixonamos? O reforço positivo e a satisfação manifestados numa área do cérebro podem explicar, em parte, o porquê de nos sentirmos bem por termos cumprido uma regra justa. Mas não diz "que" regra justa, ou sequer quão abrangente e pertinente é essa "regra" justa que cumprimos tão satisfatoriamente. Ou seja, dito de outra forma, podemos ficar satisfeitos por termos cumprido uma regra que consideramos justa do mesmo modo que um cão se sente satisfeito por obedecer à ordem do dono, ou do mesmo modo que um oficial de Hitler se sentia satisfeito em enviar judeus para os campos de concentração.

Como bem sublinha Nagel, no máximo a explicação neurológica pode ensaiar uma explicação causal para a justiça, mas nunca oferecer razões a favor ou contra uma determinado regra ou princípio de justiça. As explicações naturalistas não podem servir de fundamento último, empiricamente indiscutível e axiomático, fim de toda a reflexão ética. O facto de possuirmos a capacidade "natural", "a priorística" para seguir o bem e fugir do mal, nada nos diz acerca do bem que perseguimos e do mal de que fugimos. 

E quanto à seguinte citação:

"Isto é importante porque, da mão do castigo altruísta, o que aparece em realidade é a evidência de que os seres humanos se inclinam por natureza a castigar a injustiça, quer dizer, de que a disposição das pessoas para castigar aos indivíduos que mentem, enganam, roubam ou violam as normas sociais (morais ou jurídicas), inclusive quando não tenham sofrido nenhum dano ou se beneficiado pessoalmente, é parte de nossa biologia, um comportamento característico do ser humano. Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos sociais contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem. É este sentido da justiça o que subjaz a idéia de John Rawls (1978)acerca da capacidade para lograr compromissos por meio do véu da ignorância, propondo em termos de justiça universal, e não de interesses particulares, as regras do jogo."

Parece-me que existe aqui alguma confusão. Por um lado, o autor defende que é da nossa natureza castigar a injustiça. No limite, não distingo isso da vingança das turbas enfurecidas. Também elas se satisfazem com a "justiça" praticada. Devemos fazer a seguinte questão: perante esta circunstância da natureza humana se satisfazer com este "facto biológico" o que deve um juiz fazer perante um homem que matou outro porque este lhe tinha violado a filha? Afinal, o homem limitou-se a "castigar altruisticamente" o homem que prevaricou. Deve, por isso, ser absolvido? Não. O homem deve "conter", precisamente em nome de uma justiça mais elevada, a sua potencial satisfação permitindo que não se abra um perigoso precedente e não voltemos todos ao tempo da justiça pelas próprias mãos. Depois, diz o seguinte: "Se estamos dispostos a sacrificar uma parte de nosso patrimônio com tal de que a equidade se imponha, isso significa que nossos instintos sociais contêm essa particular maneira de fazer-nos sentir bem". Eu pergunto: que equidade pode existir pelo simples facto de se sentir satisfação na condenação do outro que prevaricou? Estarei disposto, caso seja eu a prevaricar, a sofrer o mesmo castigo? Por uma questão de equidade, sim, deveria estar disposto, ainda que tal não me "satisfaça" muito em termos biológicos.

Gostaria de saber, portanto, se é possível algum tipo de objetividade ética a axiológica num contexto irremediavelmente subjetivista. Ainda que defendam a "objetividade empírica", o que dizer da objetividade dos princípios da justiça? Ah. Claro. Não existe. A justiça e os seus princípios dependem da satisfação, da prática variada e subjetiva dos seres humanos cuja única coisa que têm em comum é um conjunto de estruturas "naturais." Ora, pelo menos seria de esperar que fossem coerentes estes senhores e que, portanto, admitissem que não existe qualquer motivação valorativa na sua atitude científica. Trata-se de "ciência pura" no sentido de pôr os resultado mais recentes da neurobiologia ao serviço do direito e da justiça. Ora, neste sentido, como devo entender a seguinte citação?

"Como disse W. K. Clifford (1879) há mais de um século, temos o dever pessoal e social de combater as crenças não respaldadas pela evidência ou que se opõem ativamente a ela, do mesmo modo que temos a obrigação pessoal e social de tratar de evitar a propagação de uma enfermidade."

Terei lido bem? "Temos o dever social e pessoal". Não se trata isto da enunciação de um princípio ético, valorativo, de justiça, com pretensão de verdade e universalidade? E não é, de acordo com o autor do artigo, precisamente com base neste princípio ético que se pretende subjugar a ética e as conceções de justiça às estruturas subjetivas da natureza humana? A pergunta que eu faço é então a seguinte: onde vai buscar este princípio a sua universalidade, se o que interessa a priori são as estruturas "naturais" que são a condição de possibilidade da sua própria validade? Afinal, é ou não possível e necessário o raciocínio ético para além da mera abordagem empírica da sua natureza? Porquê este princípio e não outro qualquer? Talvez porque existam razões para que se considere este princípio melhor que outro. Razões que certamente ultrapassarão a mera justificação naturalista. Caso contrário, cairiamos no seguinte absurdo lógico: é nosso dever de justiça provar que a justiça não tem validade em si própria mas depende das estruturas cerebrais do homem. É nosso dever provar que o dever não passa de uma atitude instintiva da "natureza humana". A questão que posso colocar é simples e decisiva: então, que razões tenho para cumprir esse dever?

quarta-feira, agosto 08, 2012

Empatia ontológica - da embriaguez da evidência à evidência da embriaguez





Velazquez, As meninas


Tudo o que existe e tem ser é verdadeiro só porque existe e tem ser. A mentira ou a não-verdade nunca está no que é, mas no que sendo o que é se arroga no direito de ser mais qualquer coisa que não é. A inverdade nasce com o símbolo. A palavra inaugura o domínio da não-verdade, da simulação, da representação e do erro. Tudo o que representa, re-apresenta. Traduz uma realidade por meio de outra realidade, uma verdade por meio de outra verdade. Uma realidade que só pode ser compreendida por intermédio de outra realidade, dissipa pelo caminho um pouco da sua identidade, da sua verdade, em prol de uma compreensão, de uma exposição à evidência que é sempre uma simplificação, sempre uma traição à essência. O símbolo trai sempre a sua própria verdade-identidade, bem como a identidade verdade daquilo que simboliza. Abdica de ser ele próprio para ser outro, mas não só nunca deixa de ser totalmente ele próprio como nunca é capaz de ser totalmente outro. Fica a meio caminho entre uma essência e uma representação. Pode não constituir uma mentira, mas é sempre uma inverdade, uma aparência. 

Cada coisa, cada face do real, se pudesse falar de si própria, só lograria falar objetivamente de si. Só tendo como referente o si-próprio poderia ser absolutamente fiel à sua verdade. Sem mediação. Mesmo assim, só poderia ser absolutamente fiel para si-próprio, ensimesmadamente, privativamente, pois nenhum intérprete subjetivo pode ser inteiramente objetivo. Todo o acesso a uma verdade objetiva se faz por tradução, por representação, por interpretação. Já não se trata de uma realidade que se substitui a outra na significação daquilo que é – um símbolo -. Isso vem depois. Trata-se em primeiro lugar de uma realidade que procura compreender uma realidade outra; uma verdade procurando aceder a outra verdade; uma objetividade procurando aceder a uma objetividade outra. Seja como for, trata-se de uma exteriorização, uma superação do ensismemamento. 

Um objeto, porém, não pode compreender diretamente a verdade objetiva de um objeto outro, simplesmente porque uma objetividade é auto-referente. Tal objeto poderia, hipoteticamente, apreender-se integralmente, fielmente, a si próprio na sua objetividade que é, como quem diz, na sua identidade. Assim, um objeto só poderia apreender integral e objetivamente outro objeto se lhe fosse possível identificar-se com esse objeto. Dito de outra forma, se as suas identidades fossem uma só identidade. Uma verdade é para si própria evidente, “clara e distinta”, porque contida e produzida em si própria. Eis a chave de todos os racionalismos e idealismos. Um pensamento é também visto como um objeto que se sabe a si próprio, claramente, imediatamente. O mesmo aconteceria, necessariamente, com os outros objetos, leis e princípios da razão que, como extensões do próprio objeto-razão, seriam clara e distintamente apercebidos e compreendidos na sua objetividade.
          
Contudo, há uma muito maior variedade de realidades, uma muito maior diversidade de objetos-verdades, e tanto quanto sabemos só um objeto entre todos os objetos procura compreender, aceder à objetividade outra que cai fora do estrito campo da sua própria objetividade - que, curiosamente, se apresenta a si própria, neste caso particular, também como objetividade outra -. Porque este objeto particular, este ente que procura conhecer e conhecer-se, é tudo menos evidente para si próprio. É talvez o menos evidente dos objetos de si para si próprio. A sua objetividade é para si mesmo opaca à evidência de si. É, ao mesmo tempo e tanto quanto se sabe, o único objeto que possui instrumentos para compreender, para conhecer, para representar, para reconhecer a evidência e vencer o ensimesmamento. É misterioso para si próprio pois ele não é apenas aquele que durante algum tempo acredita ser – apenas um objeto-razão, um objeto-pensante -. Fosse apenas isso e o cogito na sua evidência teria resolvido a questão. Ele não é apenas um objeto, uma objetividade, mas vários. Ele é toda uma totalidade, uma orgânica, uma complexidade que, mais uma vez, recusa qualquer simplificação-redução. Uma face do real, é certo, mas constituída de muitas faces, várias instâncias, várias verdades e realidades que se relacionam e correlacionam para fazer emergir um outro tipo mais complexo – superior? – de objeto: um sujeito.
            
O objeto, a face do real, a verdade particular está ensimesmada, dobrada sobre si própria, embriagada da sua permanente auto-evidência. O sujeito não. Para o sujeito, a evidência de uma face de si próprio é apenas um momento, uma instancia temporária da qual urge libertar-se. O solipsismo é apenas uma antecâmara para uma inexorável abertura ao que está fora de si, e ao que mesmo estando fora do sujeito não deixa de fazer parte deste como objeto. Portanto, ao conjunto de objetos-outros cuja alteridade se opõe à minha identidade - ainda que esta dicotomia seja ainda muito nebulosa e sem fronteiras claras –. Ao mundo, portanto. O objeto, embriagado com a evidência auto-referente da sua identidade-verdade-existência, não tem necessidade de mais compreensão. Toda a sua necessidade está contida em si mesmo. É tautológica num sentido lógico e existencial. O sujeito, sim, tem necessidade de se voltar para fora, talvez porque a sua identidade-verdade seja solidária da identidade-verdade dos objetos outros do mundo. A sua evidência está no mundo, no “ser-aí” heideggeriano, na dependência da relação e não na independência do ensimesmamento. O sujeito é um objeto cuja identidade só adquire evidência em diálogo com a alteridade. O sujeito, ao contrário do objeto, não tem clara noção das suas fronteiras e limites. O objeto está embriagado com o si-mesmo em si-mesmo limitado. O sujeito é chamado a delimitar-se. Não é claro onde termina o sujeito e começa o mundo, nem onde termina o mundo para dar lugar ao sujeito. A expressão “ser-no-mundo” adquire, nesta perspetiva, todo o seu sentido.
            
O sujeito é uma verdade que se reconhece como evidente apenas enquanto existente, para a seguir reconhecer a inutilidade e insuficiência desta evidência. Esta não implica necessariamente, logicamente, dedutivamente, uma identidade igualmente evidente. Ao contrário, quanto mais o sujeito medita na evidência, menos evidente esta se torna. A evidência sugere a suspensão do esforço para conhecer, do pensar. O sujeito não pode parar de pensar. Neste, a embriaguez da evidência de si, de um hipotético cogito, cedo dá lugar à ressaca da dúvida que persiste. Esta dúvida é-lhe essencial, por isso cedo o sujeito opera uma revolução copernicana que o descentra da pseudo-evidência de si, e o recentra na compreensão do mundo. Então, o sujeito volta-se para outras verdades, outras objetividades, outras faces do real. Neste movimento descentrador, o sujeito procura reencontrar a evidência primeira, a objetividade perdida. Ser objetivo constitui, para o sujeito, uma demanda religiosa no sentido de recuperar a ligação perdida, a conexão, a embriaguez dionisíaca da evidência primeira. É uma bênção mas também uma maldição. A ânsia pela evidência, pelo seu odor doce, pela sua luz, move o sujeito para o conhecimento, mas pode também precipitá-lo no erro, no dogma, na suspensão da razão.
           
Trata-se, naturalmente, de um esforço sempre inacabado, inglório e por vezes sisífico. Muitas vezes mais sisífico que salvífico. Mas necessário. O sujeito jamais será capaz de compreender um objeto a partir do ponto de vista – hipotético – do próprio objeto. Podemos encontrar aqui, precisamente, a raiz da objetividade de todo o conhecimento: a capacidade de constituir hipóteses/conjeturas que se aproximem progressivamente da verdade do objeto, ou seja, da evidência com a qual o objeto se percepcionaria a si próprio. O sujeito que conhece quer aspirar, nem que apenas por breves momentos, o doce odor da evidência, mesmo que de um modo incompleto, simulado e mediado. No entanto, para que o sujeito se possa aproximar de uma objetividade – que é, como quem diz, de uma alteridade – tem de encontrar formas de mediação que permitam senão uma plena comunhão com a identidade do objeto a conhecer, pelo menos uma identificação com alguns aspetos desta identidade outra. Dois sujeitos-objetos podem comunicar e deste modo encetar um processo de identificação mútua, de empatia ontológica. Por outro lado, um sujeito e um objeto não encetam verdadeiramente um diálogo. O sujeito pode interrogar, e interroga, e rodeia, e cerca o objeto, mas não é certo que obtenha respostas imediatas. O sujeito apenas pode conjeturar acerca da objetividade do objeto. Não existe empatia ontológica entre um sujeito e um objeto, a não ser por uma via: a progressiva subjetivação do objeto. O sujeito há-de torná-lo identificável, há-de vesti-lo de tantos modos diferentes até que ele se torne reconhecível. A este modo de vestir o objeto até que ele se sinta suficientemente confortável para falar de si, chamamos nós de conhecimento e de ciência, que não passa de um conhecimento progressivamente retificado e aperfeiçoado.
           
Esta empatia ontológica é a circunstância na qual o sujeito reconhece certas dimensões de si próprio no objeto que conhece. Conhecer é reconhecer-se. Interpretar é interpretar-se, como bem enunciou Ricoeur. Neste sentido é pertinente também recuperar a noção de intencionalidade husserliana. O esforço de objetividade permite alargar progressivamente – que não significa linearmente – a esfera da subjetividade. Conhecer o mundo e complexidade dos seus objetos e estruturas permite alargar as possibilidades de compreensão objetiva do sujeito. Aliás, talvez só assim seja possível ao sujeito conhecer-se a si próprio com a profundidade devida. O caminho da compreensão objetiva do homem é um caminho indirecto, de círculos e de atalhos. Mas, como se diz, por vezes é preciso andar em círculos para seguir em frente. Por vezes é preciso ir ao outro lado do mundo apenas para se reconhecer que aquilo que procurávamos sempre esteve ao virar da esquina. 

domingo, maio 20, 2012

Um só mundo - competir ou cooperar? Eis a questão




Foto da Terra - pequeno ponto azul - captada pela sonda Voyager em 1990 a 6,4 milhões de Km da Terra


O mundo é hoje uma rede complexa de relações, dependências e interdependências entre estados, entidades supranacionais, empresas, multinacionais, grupos e associações, movimentos internacionais, correntes culturais, políticas e sociais. Há crises por todo o lado, de todo o tipo, desde crises económicas e/ou financeiras, políticas e/ou religiosas, culturais e/ou civilizacionais. No meio de tudo isto, há ainda uma imensidão de seres humanos a nascer a todo o momento, mais ainda que o número de seres humanos a morrer, pelo que a população mundial continuará a aumentar exponencialmente e as crises também, na mesma medida.  
O mundo ferve de tanta ação, tanto frenesim ideológico, tanta correria e competição. As fronteiras esbatem-se, a informação corre sem qualquer filtro dando várias voltas ao mundo no espaço de um piscar de olhos. “A mentira”, dizia Churchill, “dá a volta ao mundo sem que a verdade tenha tempo de se vestir”. Hoje, diríamos, a verdade dá a volta ao mundo à mesma velocidade que a mentira, mas no meio de tanta informação, de tantos dados, bites e bytes, já não há quem guarde ainda a paciência dos garimpeiros de outros tempos, cujo olhar treinado permitia destrinçar as pepitas de ouro dos grãos de areia dos rios.
Joga-se, neste frenesim, o próprio destino do mundo. O jogo de forças é cada vez mais feroz e frenético, e as finalidades de sempre – poder, crescimento, influência, lucro, estatuto – acentuam a entropia de um sistema que já não tem mais para onde se dilatar. O mundo é só um, não há mais terras por descobrir nem novos mundos para explorar. A colonização de outros planetas é uma possibilidade, sim, mas ainda remota e que, numa primeira fase, será só para alguns, muito poucos. Os recursos existentes são cada vez em menor quantidade para um cada vez maior número de pessoas. Todos vamos, por assim dizer, para onde todos os outros vão, levados pela vaga cega que nem por estarmos em cima dela, na crista da onda, pode iludir-nos de que somos, efetivamente, levados por ela, por mais forte que seja a nossa vontade. Surfar a onda não significa que a dominemos. Significa apenas que encontramos um modo mais gracioso de sermos conduzidos por ela. Mas essa graciosidade não esconde a nossa incapacidade de lhe fazermos frente, de negarmos a sua força e inexorabilidade.
Vamos andando, mesmo que por dentro reconheçamos que essa direção, esse sentido, levar-nos-á ao abismo. Mesmo que denotemos algo de profundamente incorreto e errado, vamos seguindo com a corrente na esperança de que “melhores dias virão”, ou algo de súbito, uma revolução, uma espécie de milagre sebastianico nos resgate deste conformismo e lassidez voluntários, para que quando isso acontecer digamos, “Eu sabia!”. Sabia, mas pouco ou nada fiz. Sabia, mas não fui capaz de assumir compromissos no sentido de procurar lançar sementes de mudança e renovação.
O mundo é só um, e cada vez mais pequeno. Os interesses de hoje, as finalidades no sentido de assegurar posições de poder e de influência, são basicamente os mesmos de há setenta ou oitenta anos. Depois da Segunda Guerra Mundial, o mundo conheceu uma revolução geopolítica e ideológica inegável que determinou em grande medida o mundo de hoje. Os equilíbrios mudaram, o mundo é hoje mais multipolar e não tão bipolar como nos primeiros anos da Guerra Fria. Sem dúvida é verdade. Porém, muitos interesses instalaram-se e estão para ficar. Só um exemplo: desejo boa sorte a quem tentar reformar o Conselho de Segurança das Nações Unidas no sentido de retirar poder à China, à Rússia ou aos EUA. Boa sorte! Muito boa sorte, aliás!
Basta olhar para a História para compreender um facto muito simples: nunca os interesses estabelecidos e os equilíbrios de forças se alteraram sem sangue, suor e lágrimas, que é como quem diz, guerras devastadoras e revoluções. Isto diz muito de nós e do nosso passado coletivo, mas diz muito mais quanto ao nosso futuro. Poder, crescimento, influência, lucro, estatuto. Os mesmos interesses e equilíbrios estabelecidos de hoje, vistos a partir das mesmas finalidades e meios para lá chegar, simplesmente não têm futuro. A competição desenfreada, a insularidade e o entrincheiramento ideológico, conduzirão todo o sistema – o mundo – a terríveis convulsões sociais, políticas e económicas. Temos duas opções: ou continuamos neste caminho – e nesse caso teremos de aprender à força e da forma mais cruel a importância da cooperação – ou tomamos desde já nas nossas mãos a tarefa de repensar o modo como nos podemos relacionar num mundo e num sistema global cada vez mais pequeno para tantas idiossincrasias ideológicas, vontades de poder e de estatuto, e no qual a procura por recursos – alimentos, matérias-primas, etc – é exponencialmente maior para uma oferta exponencialmente menor.
Só os grandes desafios, sobretudo aqueles que significam grandes perdas ou grandes ganhos, podem ensinar o valor primordial da cooperação e da humildade. 

domingo, abril 15, 2012

O "apelo do Sentido" e a essência do homem


Escher


O sentido remete-nos para um caminho, uma direção. Não há sentido, porém, sem um propósito a atingir, uma intencionalidade com vista a uma finalidade. O sentido pode também ser visto como compreensão, como integração da parte no todo, como contextualização que atribui inteligibilidade, “razão de ser”, significado. A parte só obtém plena inteligibilidade e significado no contexto da totalidade onde se insere.
O sentido é finalidade, mas também é causa. Na prossecução de um determinado fim o sentido suprime o caos, a aleatoriedade, a desordem, abrindo caminho à organização, formando e (in)formando. O Sentido “dá-sentido”, e ao dar-se cumpre-se. Isto é o mesmo que dizer: a essência do Sentido é precisamente a causa da existência daquilo ao qual o sentido se dá. Assim, ao “dar-se” naquilo que existe é o próprio sentido que se cumpre na sua essência.
Poderíamos afirmar, neste contexto e nesta perspetiva, que a existência de tudo o que existe, inclusive do homem, se inscreve no plano essencial do consumar de uma finalidade, de um sentido. Nem a essência precede a existência, nem a existência precede a essência. Antes, a existência é a própria essência a ter lugar, a acontecer. Neste contexto, sempre que algo existe, acontece e tem lugar, é o próprio Sentido que se desdobra na sua própria natureza e finalidade. Diríamos, em termos heideggerianos, que a existência do homem é indissociável da essência do ser. Isto é o mesmo que dizer que a existência do homem é a projeção (ec-sistência) da essência do próprio ser no plano da espacio-temporalidade. A essência ou natureza do homem será, portanto, a de “ser-no-mundo”.
Neste contexto, poderíamos substituir “ser” por “Sentido”. A essência do homem consistirá na consumação vital de um sentido que desconhece. O Sentido, entendido desta forma, revela-se continuamente enquanto continuamente existe. Ao mesmo tempo, porém, permanece oculto a quem não é capaz de o ler. O sentido – natureza – do homem não consistirá, porém, meramente em viver ou em deixar-se viver. Não é por deixar-se viver ou viver alienado do pensar e desse profundo “apelo do ser” de que Heidegger fala, que ele contribui para a consumação do sentido, à semelhança de uma pedra, uma bactéria ou um gato. Pois, a pedra, a bactéria e o gato não se dedicam a pensar o sentido, pois disso verdadeiramente não sentem nenhuma necessidade. Apenas são. Também o homem apenas é, mas ser para o homem é mais do que apenas deixar-se ser. O homem tem necessidade de sentido e de sentidos. O homem tem necessidade de dar resposta ao absurdo e à estranheza perante a existência e os existentes. As respostas que dá são, elas próprias, construções de sentido e de significado. O homem será o único ser vivo, tanto quanto sabemos, que formula para si próprio finalidades, objetivos e normas de ação com vista à concretização e consumação de propósitos. É desta forma que o homem responde ao “apelo do ser”, apelo que não reside fora de si, nem sequer num qualquer plano transcendente ou “coisa-em-si”, mas dentro de si próprio. O “apelo do ser” é o apelo da essência ou natureza do homem ao próprio homem para que continuamente se esforce para “dar-sentido”, para que conduza à ordem o caos e o absurdo que continuamente o interpelam.
Muitas são, para o homem, as formas de “dar-sentido”. Religião, metafísica, ciência. A perda do sentido é sempre a perda do contexto. Dizer isto é dizer que a decadência do sentido é contemporânea da decadência de uma determinada mundividência ou paradigma globalizante. Porque todos os paradigmas e mundividências são essencialmente históricos, o homem sempre se vê na necessidade de reinventar o sentido; porque as mundividências são sempre temporárias, o homem sempre se vê na necessidade de justificar de si para si mesmo o seu lugar, a pertinência e a “razão-de-ser” do seu “estar-no-mundo”.
Sempre de acordo com o seu daimon interior (o apelo do Sentido) o homem continuará sempre em busca de novos sentidos e significados que expliquem o seu lugar no mundo e o próprio mundo. Nesta continua edificação do sentido, talvez um dia o homem venha a ser capaz de satisfazer plenamente o apelo que sempre o inquietou. Talvez um dia seja capaz de “ler o Sentido” que continuamente se revela e ao mesmo tempo se esconde em tudo o que acontece e tem lugar. Contudo, ler o sentido será sempre dar-lhe significado, que é o mesmo que dizer torná-lo inteligível “vestindo-o” com as vestes da linguagem e do símbolo. Talvez não tenhamos ainda a linguagem adequada para o fazer.

segunda-feira, abril 09, 2012

Cidade



Ao levantar da poeira dos pés que passam
Dos pés que correm para parte incerta
Ao barulho ensurdecedor das vozes que gritam
Das vozes que clamam sempre inquietas
Pesa o futuro de um silêncio sem par
Quando todos os pés deixarem de correr
E todas as vozes deixarem de clamar.

Tudo é tão breve
Tudo é tão excruciantemente breve
Dura o tempo em que esta frase se escreve
Dura menos que um floco de neve
Que já o deixou de ser antes de tocar o chão.

Neste plano em que todos somos irmãos
Contemporâneos de uma mesma idade
Foi-nos dado um solo baldio
Pejado de pedras, longe do rio
E nele edificaremos a cidade.

Nele edificaremos a (feli)cidade
Que é o mesmo que dizer
Que nela abriremos espaços
Que é o mesmo que dizer
Que nela empenharemos os braços
Para que nessa cidade
O homem encontre a sua morada.

domingo, abril 01, 2012

Um enigma esfíngico - a natureza do homem

                                              

Indagar a “natureza” ou “essência” do homem tem sido o mister dos filósofos desde a alvorada da Filosofia. Não será, porém, uma inquietação recente em termos da História humana. É, sim, uma inquietação provavelmente tão velha como a própria humanidade, penetrando na bruma dos tempos dos quais pouca ou nenhuma memória histórica existe. Precisamente esta inquietação - indiciadora ela própria de uma condição própria ao humano -, ao ter estado sempre presente no processo de evolução cultural e civilizacional do homem, influenciou e (in)formou esse mesmo processo. Toda a cultura é, em última instância, símbolo. Todo o símbolo será, em última instância, sentido. “A linguagem é a casa do Ser”, escreve Heidegger. Pois, a cultura e o símbolo serão, para o homem, a casa sempre por terminar do sentido. Do seu sentido. Que relação tem tudo isto com a resposta à perene questão acerca da natureza do homem?

A minha resposta é imediata - tudo. O homem é “homo symbolicus” como propõe Cassirer, e muito bem. Porém, será que isto diz tudo acerca do homem? Será esta a tão fugidia “natureza” do homem? Que o homem é produto e produtor de símbolos e de cultura, parece-nos hoje claro. Que afirmar isto é o mesmo que afirmar que o homem é produtor de sentido e de sentidos, parece-me igualmente claro e legítimo. O que é que isto nos diz acerca natureza humana? Diz-nos que o homem, ao contrário do cão e do gato, da ameba ou do gorila, vem ao mundo sem nunca dele fazer parte completamente. O homem não nasce definido, determinado e em harmonia com a natureza. O homem não traz, inscritas nos seus genes, as finalidades do seu “estar-no-mundo”. Com o corte do cordão umbilical logo após o nascimento corta-se também a ligação com um mundo dado, imediato. Todo o processo de individuação ao longo do crescimento, do desenvolvimento ontogenético dos indivíduos, se faz num progressivo mergulhar num “Eu” que é cada vez mais “Eu” e menos “Mundo”; faz-se, dito por outras palavras, num progressivo mergulhar no símbolo, na estrutura de uma cultura que é, como já vimos, a casa de todos os sentidos.

É desta fratura homem/mundo que nasce toda a vontade de conhecer. O homem não gosta dos factos brutos, do dado puro e simples. A crueza do mundo sem a intermediação do símbolo é para o homem insuportável. O desconhecido é fonte de temor ou de fascínio, nunca de indiferença. O fogo, quando foi visto pela primeira vez por olhos humanos, não pode ter deixado indiferente os seus observadores. Assim, o primeiro passo para dar uma “face humana” ao desconhecido, para lhe dar um lugar na sua “casa de sentidos”, em suma, para o dominar, será o de lhe dar um nome. Poder dizer o mundo, os seus objetos e fenómenos, é como percorrer os corredores de um casarão no qual nunca se esteve, mergulhado no silêncio e na escuridão, e começar a falar alto como se o som da própria voz pudesse aliviar o temor do desconhecido.

Neste contexto, o objetivo da palavra enquanto veículo de significados, enquanto símbolo, sempre serviu para humanizar o mundo. Humanizar o mundo é dar-lhe um sentido humano, é aproximá-lo do homem no sentido de restabelecer a conexão perdida, o elo quebrado entre o homem e a natureza; dito de outra forma, entre o homem e o Sentido. Aqui talvez possamos estabelecer o nexo entre mito e cultura, entre religião e sentido. O mito, enquanto expressão de cultura, enquanto humanização do transcendente ou transcendentalização do humano, mais não é do que a expressão de um esforço para “religar”, restabelecer a ligação, ideia que estaria expressa originalmente no étimo latino de religião.

A noção de queda, de “pecado original”, de “idade de ouro”, está patente na maior parte dos mitos e religiões do mundo. O sentido é curioso e paradigmático: a queda é sempre um derivar negativo do conhecimento para o desconhecimento, da certeza para a incerteza, da plenitude para a incompletude. Antes de comerem o pomo da árvore do conhecimento oferecido pela serpente, nem Eva nem Adão se haviam questionado acerca da sua nudez ou do seu lugar bem estabelecido por Deus no paraíso. O comer da maça teve o condão de lhes abrir os olhos e os ouvidos para a sua condição. Teve o efeito de um renascimento, de um novo acordar, não para a perfeição divina mas para a imperfeição e incompletude humanas. A expulsão do paraíso é o exílio da certeza. Será, em última análise, o degredo onde a incerteza e a dúvida tomam o lugar da certeza e da sabedoria. Sabedoria que não significa a possessão de todo o saber, mas a ignorância da ignorância quanto ao muito que não se sabe.

Não é possível afirmar com certeza se alguma vez essa pretensa “harmonia” ou “idade dourada” existiu. Talvez nunca tenha existido. Talvez o homem, desde que é homem, tenha estado sempre em desacordo, sempre em desarmonia, e talvez essa desarmonia tenha aberto a porta para todas as conquistas culturais e civilizacionais. Não sabemos. Mas a questão da natureza do homem permanece. Pois, qual então a natureza do homem?

Hoje, depois de centenas de milhares de anos de evolução e involução, de civilização e barbárie, de história escrita e – talvez não menos importante – de história não-escrita, ainda não existe resposta à questão acerca da natureza do homem. O problema será, talvez, paradoxal. Muitas foram as tentativas de resposta ao longo de toda a História, mas nenhuma foi suficientemente duradoura e consensual para servir de modelo final. Cada cultura, como vimos, é uma casa de sentidos, e portanto cada momento da história, cada época, cada civilização ou sociedade inventou para si um modelo de homem, um propósito e uma finalidade. A “natureza” do homem, quando pretensamente compreendida e conquistada, serviu quase sempre como instrumento para propósitos políticos mais ou menos bem intencionados. Então, qual a natureza do homem?

O homem, como declara Cassirer na obra Ensaio sobre o Homem, é um ser que está constantemente em busca de si próprio. Eu diria, portanto, que em termos de especificidade do homem enquanto espécie animal, o questionar-se acerca da sua própria natureza é um aspeto fundamental. Contudo, só se questiona acerca de si mesmo quem anda perdido de si mesmo. A mutabilidade das definições de homem, da cultura no seu todo, o relativismo cultural, a falta de referências em termos civilizacionais, éticos e axiológicos, é o caldo de onde brota todo o questionar fundamental do homem acerca de si mesmo. Quando questiona a sua própria natureza do modo mais radical, o homem procura um Sentido para além do sentido. Um “algo” com pretensão de universalidade que não esteja sujeito ao devir e à mutabilidade de um mundo simbólico, cultural e, portanto, artificial. Porém, nenhum homem está para além ou é extemporâneo à sua própria circunstância. Procurar dar uma resposta acerca da natureza humana, ainda que com pretensão de universalidade, é ainda fazê-lo através de uma cultura, de uma estrutura histórica de símbolos e significados. Talvez nunca venhamos a saber se existe uma natureza humana para além do “véu de Maya” da cultura que o homem produz para si mesmo, para além da mobília com que, por necessidade de sentido, o homem vai mobilando a “casa do ser” onde habita.

Da justiça e do amor: um filosofar sem filósofos

O Julgamento de Salomão, Gaetano Gandolfi, 1775


(Escrito por Ana Carina Vilares e Ruben Azevedo)

Carina: Coloco-me na minha circunstância a pensar sobre a justiça - o conceito e as suas conceções - e coloco-me pois dentro da ligação possível entre a liberdade e a igualdade do ser humano e das suas relações interpessoais no mundo. Já compliquei, eu sei. Mas em boa verdade para responder com seriedade à questão o que é a justiça? e sendo ela uma dialética sempre tensional, desproporcional, entre ser livre para mim e ser igual para outrem, penso que a esta primeira pergunta deve associar-se uma outra, mais trabalhosa e esforçada, difícil. A questão é a seguinte: quando ajo justamente será que sei que sou livre e, por sua vez, igual a outrem? Sei, é certo. Contudo, nem sempre o quero ser. Dois verbos surgem, portanto, em destaque na abordagem conceptual da justiça: o verbo saber e o verbo ser. Intensamente filosóficos, altamente perigosos. Na sua separação reside a diferença entre saber o que é a justiça e, por sua vez, ser-se justo. Na sua união o seu contrário. Ou seja, na sua união reside a tensão entre saber e ser justiça, na relação entre a lei justa e a prática social da justiça, enquanto reconhecimento do outro como meu semelhante, próximo, vizinho; num paradoxo, no outro igual. Curiosamente e hoje que escrevo sobre um dos temas mais filosóficos de sempre não posso chamar à colação discursiva filósofos. Somente poetas. E assim dou um ar de pitonisa e remeto a minha reflexão aos Poemas Inconjuntos de Alberto Caeiro, dos quais destaco uma passagem simples, incisiva e, a meu ver, bastante filosófica. O poeta diz: “Haver injustiça é como haver morte.” Aqui morte não é o contrário de vida. Não é. Há nas palavras de Caeiro outra mensagem escondida, mais profunda, oculta e desoculta também. Perante a injustiça ficamos parados, atónitos. Num primeiro momento, não pensamos, não adaptamos o nosso saber do que é a justiça ao ser justo, ou seja, a ideia à sua concretização. Para nós, a injustiça surge como algo de irreal, não-ser, não-nosso. É como se o corpo e o espírito fossem sem vida durante alguns momentos, um curto-circuito que se dá quando somos desleais, maus, vis, infiéis. Aquela ação parece não fazer parte de nós e sentimo-nos estranhos, a definhar, a deixar de ser. De facto a ideia filosófica - moral e política - de justiça que promete animar e anima a prática comum das instituições não chega, não preenche a vida humana de boas ações e de ações justas. É preciso mais do que saber, é preciso ser. Sabemo-lo desde… não vou dizer. Mas, para se ser justo, solidário, amigo, companheiro, e sê-lo a cada bater incessante do nosso coração é preciso ter um: um coração. Não um coração de pedra, mas de carne, de corpo, uma espécie de corda que incorpora e dinamiza o que as ideias não conseguem fazer sozinhas por muito racionais que possam parecer. Se à ideia de justiça unimos as palavras distribuição, equilíbrio, equidade, em última instância, igualdade, elas pronunciam-se de ânimo leve, mas não se concretizam por si. É preciso alguém. Uma pessoa de carne e osso, pessoas singulares. Alguém que lhes dê corpo, chama, carne, emoção… E tens alguma coisa a dizer sobre isto Ruben?

Ruben: Sim professora. Não há dúvida que a justiça por si mesma será apenas uma das faces de uma outra expressão, menos fria, menos letra de lei e mais espírito. Chamar-lhe-ia amor. E, por isso, dou espaço ao próprio amor para se manifestar:

Amor: Tenho muitos nomes, e um deles é Amor. Defino-me desde os tempos imemoriais segundo uma necessidade universal de Concórdia, Harmonia e Unidade. Antes de ser já o era, e cada átomo do Universo, cada partícula mais elementar dessa matéria que é também espírito, guarda em si mesmo a memória antiga, remota mas tão presente quando ausente, do Equilíbrio Primordial. A divisão e a desunião são apenas momentos, episódios de uma História ainda totalmente por escrever, pois tudo o que existe partilha de um antepassado comum, um tempo para lá de toda a bruma onde tudo estava ligado, em perfeito e são Equilíbrio. Um ainda nebuloso pecado original deitou tudo a perder, e o ponto de densidade infinita onde tudo o que existe e alguma vez existirá, onde todo o contraditório e todo o paradoxo encontravam a sua lógica oculta, explodiu e fragmentou-se em infinitas partes que, porém, guardam no mais profundo de si a memória do Todo. Eu, o Amor, nada mais sou do que a expressão desta vontade inerente a todo o ser de retornar à Totalidade, ao Uno original, ao Equilíbrio Primordial. Eu, o Amor, insinuo-me nas almas de tudo o que é, vivo ou não vivo, animado ou inanimado, aproximando o diverso, unindo o disperso, para que num saudoso futuro os pequenos nadas retornem ao paraíso de onde nunca deviam ter saído; para que, religados, o Alfa e o Ómega sejam por fim, um só espírito. Existo em tudo o que existe. Sou eu que desperto no átomo essa vontade de união com outro átomo para que ambos, complementando-se, teçam a trama da matéria; sou eu que desperto no homem esse vazio essencial, esse espaço de solidão e incompletude que o move na direção do outro, igualmente só e incompleto, para que ambas as solidões se façam companheiras de viagem; porque eu insinuo-me nas essências, por isso aquele que diz amar o diverso de si apenas se reconhece a si nele. Eu sou o espelho das almas, e amar mais não é do que olhar-se ao espelho na alma do outro. Sou um criador de mundos, um demiurgo fundador de oásis de eternidade, de luz e esperança subtil na negritude do indeterminado. Sou um astro que verte a sua luz sobre as estradas dos que estão perdidos e desencontrados, para que se encontrem e descubram que afinal todas as distâncias podem ser superadas e todas as fronteiras ultrapassadas, desde que haja luz. Sou por natureza narcísico, porque o Amor só pode amar-se a si mesmo e não nenhuma coisa em particular. Não sou eu que amo os homens, mas os homens que se amam a si mesmos, e é por se amarem em reciprocidade que me amo a mim mesmo. Porém, é quando o homem deixa de amar o outro para se amar primeiro a si, é quando o Ego se insinua que eu me transfiguro como Janus, e então a minha face não é a do Amor, mas a do Ódio. Não venha o Ódio separar aquilo que o Amor uniu.

Ruben: Está esclarecida professora Carina?

Carina: Sim, emotivamente, sim. Contudo e supondo a conclusão inconclusiva de que a justiça e o amor têm o mesmo solo filosófico, a saber, a união e a igualdade, porque razão andam tão distantes? Podes responder-me, Ruben?

Ruben: Gostaria, para começar, de responder a partir da história bíblica de Salomão, o rei da antiga Israel cuja sabedoria se tornou lendária e paradigmática. Não é por acaso que as estátuas que representam a Justiça nos tribunais atuais seguram uma espada, símbolo da espada de Salomão. Como sabe, a Salomão foi apresentado um caso de duas prostitutas que reclamavam a maternidade de uma criança viva. Salomão, depois de ouvir cada uma das pretendentes à maternidade da criança, tomou uma decisão que lhe pareceu, de acordo com os cânones da equidade e da repartição justa, a mais adequada. Com a sua espada, dividiria a criança a meio e daria a cada pretensa mãe uma metade, e desta forma o problema da repartição ficaria resolvido. Para que melhor se compreenda transcrevo aqui a passagem em questão:

"Duas prostitutas foram ter com o rei [Salomão]... Uma das mulheres disse: «Meu Senhor, eu e esta mulher moramos na mesma casa. ... Quando acordei de manhã, para dar de mamar ao meu filho, vi que estava morto. Olhei bem e notei que não era o filho que eu tinha dado à luz.» A outra mulher disse: «É mentira! O teu filho é que está morto e o meu é que está vivo». E começaram a discutir diante do rei. Então o rei interveio. ... «Trazei-me uma espada.» E trouxeram ao rei uma espada. O rei disse: «Cortai o menino vivo em duas partes e dai metade a cada uma.» Então a mãe do menino vivo ... suplicou: «Meu senhor, dá-lhe o menino vivo, não o mates.» A outra, porém, dizia: «Não será nem para mim, nem para ti. Dividam o menino ao meio.» Então o rei pronunciou a sentença: «Entregai o menino vivo à primeira mulher. Não o mateis, pois é ela a sua mãe."

Ao que parece uma das prostitutas parecia renegar a criança morta que era sua filha, cobiçando a criança viva, filha da outra prostituta. A partir de uma visão estritamente equitativa, contabilística, baseada numa conceção de justiça como repartição igualitária, a decisão do rei de dividir a criança viva a meio parece ser a mais adequada e justa. A verdade é que ele, enquanto juiz imparcial, não tem meios para averiguar com absoluta certeza a quem pertence a criança. Na época de Salomão não existiam ainda os testes de ADN para servir de prova empírica capaz de sustentar uma decisão clara e inequívoca. A sua decisão, se se mantivesse neste registo meramente contabilístico, constituiria não propriamente um ato justo, mas uma espécie de ato de injustiça menor. Assim, restou-lhe uma boa dose de inteligência e compreensão no que toca à natureza humana, quando colocada perante determinadas circunstâncias limite. Uma decisão verdadeiramente justa teria de superar a mera repartição equitativa, a mera igualização. Desta forma, a decisão do rei serviu sobretudo para provocar uma reação fundada no amor, que neste caso concreto é sobretudo de amor maternal. Perante a morte eminente da criança, a verdadeira mãe só poderia reagir de modo a salvaguardar a vida da criança, ainda que para tal fosse obrigada a entregá-la à outra prostituta. Esta, movida sobretudo pela inveja e por um sentimento de vingança travestido de senso de justiça, estava disposta a ver a criança morrer para impedir que a verdadeira mãe tivesse a felicidade de recuperar a criança. Se não podia ficar com ela, então mais ninguém ficaria. A sabedoria de Salomão está precisamente no modo como foi capaz de fazer justiça através da comoção, ou seja, despoletando no julgado um movimento complementar ao movimento do juiz, cujo ponto de convergência é o mais próximo possível de um tipo de justiça ideal. No caso da verdadeira mãe da criança, essa convergência de intencionalidades deu-se entre o amor maternal e a equidade distributiva. No caso da mãe falsa deu-se antes uma divergência de intencionalidades, desta feita entre o ódio e o desejo de vingança e a equidade distributiva. Se o rei tivesse optado por corresponder ao desejo da mãe falsa, estaríamos talvez perante uma decisão equitativa, mas injusta. Faltava-lhe, para ser verdadeiramente justa, o espírito do amor.

Carina: É verdade Ruben. Não tenho muito mais a acrescentar. De facto, a verdadeira glória do professor, neste caso da professora, é ser ultrapassado pelo seu discípulo. Queria apenas fazer notar uma consideração. O amor vai mais longe do que a justiça, alcança o que a lei justa não promove por si, é verdade. Há a generosidade, a compaixão, a cordialidade, que conjugam toda uma série de emoções que ajudam a colmatar a frieza e a impessoalidade da justiça. O amor fala na primeira pessoa como tu bem referes e falas. Não há intermediários, nem mediações, há pessoas que tornam a sua experiência privada pública e sofrem na arena trágica. Por tragédia, falo mais uma vez em Antígona, paradigmática por excelência. Sófocles, o seu autor, faz significar pela ação da protagonista o amor, a compaixão, os quais forçam os limites da lei justa, obriga-os a “pensar mais”. Contudo, há sempre a necessidade de uma face impessoal da justiça que evite a tragédia, a lei que estabelece a fronteira entre o imediato e o inacessível. O ato de Antígona ao sepultar o seu irmão Polinices é contra a lei citadina de Creonte. Esse ato simboliza a violência da justiça divina no seu aparecer, uma lei ilegível, não social, mas que é acontecer trágico e que despoleta a cólera de Creonte. A generosidade, a compaixão, em última instância, o amor desocultam a catharsis simbólica da justiça, mas é preciso que ela também seja justiça e não só amor. Ou seja, medida, não só desmesura. Esta última pode despoletar tragédias pessoais e comuns se não formos capazes de sermos impessoais, de nos despirmos por vezes de nós, de sentirmos menos em prol dos outros. Não quero com isto dizer que a impessoalidade não seja, não radique na nossa individualidade. Radica sim e é aquilo que, por sua vez, permite ao ser humano ser verdadeiramente livre, autónomo, igual, personificar como diz Sophia de Mello Breyner, “a forma justa”, ao refrear alguns dos instintos humanos mais básicos. Um pouco como diz o rei Salomão em relação ao dom da palavra: “Quem refreia a boca guarda a sua vida. Mas quem solta os lábios arruína-se.” (Provérbios 13:3) E termino com o poetar de Sophia:

“Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino -
Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo.”

Ruben: Não há dúvida que tem razão, professora. Curioso que a sua reflexão caminha num determinado sentido, para o qual o poema de Sophia é sem dúvida o corolário adequado. Porquê? O caso de Antígona é o exemplo paradigmático do conflito entre a lei dos homens – demasiado humana no sentido de vil, radicada na vontade de poder, nos vícios da ganância e da dominação do homem pelo homem - e a lei dos deuses - eterna, universal, radicada nas virtudes da divindade, longe da vileza do terreno. Não, atenção, que os deuses gregos fossem propriamente um exemplo de virtude, mas é notória esta necessidade de encontrar um chão sólido para a moralidade no autor desta famosa tragédia. A verdade é que a história - a nossa história enquanto civilização - tem tentado diminuir este fosso entre a “lei divina” e a “lei dos homens”. O substrato universalista dos Direitos do Homem, radicado na noção de direito natural, bem como a “autonomia legisladora da razão” foram tentativas de fundar uma legalidade verdadeiramente humana, fundada numa espécie de convergência “pineal” entre a razão do homem e a razão divina. Neste contexto, surge o Amor como força vivificante da lei, este Amor pelo qual revoluções se fizeram, valores novos se afirmaram, sempre com vista à construção de uma cidade que a todos acolhesse enquanto seres de dignidade, iguais e fraternais. O problema está, de facto, na aplicação da lei. Não é que a lei seja má, mas quem a aplica, quem tem o dever de a interpretar e de a aplicar aos casos concretos, pode muito facilmente cair no perigoso vício da indolência administrativa. Perde-se o rosto humano, e com ele perde-se a Justiça. Mas também o Amor está em perigo, sobretudo quando se pretende inventar uma espécie de “Amor de Estado”, ao invés de um amor individual, experiencial, humano. O Amor de Estado, assim como a Justiça de Estado são extremamente perigosos e totalitários. Prefiro antes um Amor de homem para homem, bem como uma Justiça de homem para homem. Deixo, para terminar, um cântico escrito por São Paulo:

"Ainda que eu falasse línguas,
 as dos homens e dos anjos,
 se não tivesse amor,
 seria como sino ruidoso ou como címbalo estridente.

 Ainda que tivesse o dom da profecia,
 o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência;
 ainda que tivesse toda a fé,
 a ponto de transportar montanhas,
 se não tivesse amor,
 nada seria.

 Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos,
 ainda que entregasse o meu corpo às chamas,
 se não tivesse amor,
 nada disso me adiantaria.

O amor é paciente,
o amor é prestativo;
não é invejoso,
não se ostenta,
não se incha de orgulho.

Nada faz de inconveniente,
não procura o seu próprio interesse,
não se irrita,
não guarda rancor.
Não se alegra com a injustiça,
mas regozija-se com a verdade.
Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta."

Muito obrigado por esta partilha magnífica, pela honra de poder partilhar consigo o ouro deste pensar a dois.

Carina: De nada, Ruben. Foi um prazer filosófico e poético, obrigada