Anúncios google

sábado, setembro 24, 2011

O papel do professor e a relação entre educação e cultura



(Artigo escrito no âmbito da disciplina de Ética e Deontologia, Mestrado em Ensino da Filosofia)


Se partirmos de uma definição meramente etimológica, o professor é aquele que professa, ou seja, aquele que serve de veículo a uma doutrina, de um pensamento ou de um conjunto de ideias. Neste contexto, o seu papel é o de transmitir ao outro aquilo que este não sabe, não conhece, não professa. O professor é aquele que cultiva, que faz profissão, que se dedica a algo. Nas primeiras civilizações, muito antes de o professor se assumir como um profissional do ato de professar – ou ensinar se quisermos -, a educação e a transmissão de conhecimento eram exercidos pelos conhecedores do ofício que se pretendia ensinar. Não existia uma verdadeira separação entre o praticante, o artista, o filósofo, o profissional, e o mestre. Poucos tinham acesso a um verdadeiro “sistema de ensino integral”, pelo que estava bem diferenciada a aprendizagem e os seus vários contextos. Na Suméria, no Egipto ou mesmo na Grécia, a aprendizagem da escrita, dos elementos da matemática e da geometria, e de outros conhecimentos considerados “superiores”, não estava acessível a todos, mas apenas a uma elite considerada destinada a administração do estado, ou ao sacerdócio. Os restantes, o povo, estava limitado aos conhecimentos que os seus pais, os seus avós, os seus bisavós, iam eternizando de geração em geração, num processo de transmissão de conhecimentos práticos básicos, suficientes para garantir que o ofício dos antepassados seria praticado pelos descendentes, sem grandes expectativas de ascensão a um outro plano da hierarquia social, garante de uma ordem sancionada pelos deuses. Neste contexto, é legitimo afirmar que o processo educacional – se é que podemos falar assim – servia única e exclusivamente como garante da tradição. A sobrevivência de uma civilização, de uma cultura, a sua perenidade ao longo das eras, a sua supremacia cultural e política, dependia do modo como as novas gerações compreendessem e perpetuassem os costumes, tradições e mitos dos antepassados.

O advento da democracia grega foi acompanhado por uma democratização do processo educacional. Se cada cidadão de pleno direito era chamado, a certa altura da sua vida, a participar da administração da pólis, não se podia esperar que ele desempenhasse bem o seu papel sem um conhecimento elementar da escrita, da aritmética e da cultura gregas. Sabemos também da importância atribuída pelos gregos à cultura do físico, à ideia de “mente sã em corpo são”, à integralidade clássica do desenvolvimento do indivíduo. Integralidade essa da qual somos herdeiros ainda hoje. A importância da palavra, do verbo, a liberdade especulativa e política da Atenas democrática, criou as bases para o surgimento de “escolas”, não no sentido que atribuímos hoje, mas no sentido de movimentos cívicos, sociais, mais ou menos abertos, geralmente iniciados por indivíduos que se consideravam “sábios”, ou pelo menos “amigos da sabedoria”. Não estavam limitados por nenhum programa ou currículo estatal, nenhuma doutrina ou tradição. Ensinavam a “arte de bem falar”, especulavam acerca do mundo fazendo uso de argumentos mais ou menos naturais, traziam consigo conhecimentos geográficos e matemáticos que aprendiam nas suas longas viagens pelo mundo antigo, nomeadamente pelo Egipto, Pérsia e Índia. O contributo destes “filósofos” foi fundamental para a sedimentação de uma forma clássica de ver o mundo. É óbvio que a proliferação destes “mestres profissionais” pôs em evidência muitos charlatães e “demagogos”, tão denunciados por Platão nas suas obras. Claro que a democracia grega não era perfeita, e o caso Sócrates é disso exemplo, acusado de “corromper os jovens e negar os deuses da cidade”, mas em última análise podemos entender isto como uma reação à atitude de um homem que fez cair do pedestal da “sabedoria” muitos falsos sábios que, naturalmente, nutriram contra ele ódio e ressentimento. O que não significa que não fosse ele próprio uma espécie de demagogo… mas isso é outra história.

Hoje, o papel do professor e a importância da sua ação na cultura da sociedade, é em grande medida herança do advento da razão, dos direitos humanos, da conceção do indivíduo como dotado de direitos inalienáveis e, portanto, digno em si mesmo de ter acesso à cultura e de ser, ele mesmo, criador de cultura. A educação, vista como um processo de transmissão de conhecimentos diversos – científicos, filosóficos, técnicos –, bem como de desenvolvimento de competências, alargou-se e democratizou-se como nunca antes na história humana. A consequência foi a da necessidade imediata de formar profissionais da educação em grande número, e rapidamente, no sentido de “educar as massas”. O caso português, sobretudo no pós-25 de abril, é paradigmático das consequências de uma repentina democratização do processo de ensino. Apressadamente, foram colocados ao serviço milhares de professores para responder à necessidade de “educar o povo”, com prejuízo da própria qualidade do ensino. Tivessem as coisas sido feitas de outra forma, sem processos “revolucionários” mas com inteligência e espírito de serviço, e talvez a percentagem de analfabetos em Portugal nas vésperas do 25 de Abril de 1974 – oitenta por cento! - não fosse dramaticamente maior que a percentagem de analfabetos na Grã-Bretanha em finais do séc. XIX – que, já agora, se situava nos quarenta por cento - .

O professor é sempre, em qualquer época, um veículo de cultura, mesmo que se trate de uma “não-cultura”. É inegável hoje que a técnica, a vertente “profissionalizante”, a criação de capital – inclusive dessa coisa extraordinária chamada “capital humano” – define a orientação do sistema de ensino, dá-lhe corpo e justifica o que vem sendo feito até hoje nesta área. A integridade clássica está a perder-se, e o aluno já não é um “homem”, ou indivíduo, com tudo o que lhe está inerente, mas um futuro produtor/consumidor. Assim, quem perde é não só o aluno, como perde a sociedade, como perde a relevância social do professor, sobretudo os das chamadas “ciências humanas”, menosprezados como supostos promotores de “inutilidades” ou de “diletantismos” vários.

Neste contexto, o papel do professor deve ser o de desconstruir este estado de coisas. Já não se trata apenas de ensinar, ou de educar, mas de intervir até politicamente numa base crítica, de não-conformismo, para mudar este estado de coisas. É preciso também produzir cultura, numa sociedade desorientada, sem referências sérias de bases para além do imediato, do “útil” e das exigências dos mercados.

Sem comentários: