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terça-feira, outubro 05, 2010

100 anos a aprofundar a Coisa Pública em Portugal




República vem do latim Res Publica (coisa pública). Há 100 anos, alguns aventureiros influenciados largamente pelo exemplo da Revolução Francesa, Americana, e pelos ideais maçónicos, e apoiados por elementos do exército regular e por milícias populares, empurraram o último dos representantes da Casa de Bragança para um exílio sem retorno. Pelas 9 horas da manhã do dia 5 de Outubro, a República era proclamada da varanda dos Paços do Concelho, em Lisboa, pela voz de José Relvas, um dos mais eminentes elementos do directório republicano.

O ideal da república não é novo. Podemos afirmar até, com alguma segurança e acuidade, que não existe apenas uma república, mais várias. A primeira das repúblicas – ou pelo menos a primeira propriamente designada como tal – foi a Romana, implantada depois da deposição do rei romano Tarquínio O Soberbo. A partir desse momento até à autoproclamação de Júlio César com Imperador, Roma foi uma república na medida em que foi governada por Cônsules e por um órgão novo – o Senado. Verdadeiramente, o Senado pretendia representar o populum (o povo), e o Cônsul não era mais do que o primo inter pares, ou seja, o primeiro entre iguais, sem lhe estar reservado qualquer privilégio de nascimento ou legitimação divina. Além disso, o cargo de Cônsul estava aberto a plebeus, ou seja, aquilo a que hoje podemos de chamar de civis.

Antes dos romanos, já os gregos ensaiaram tanto a nível teórico como prático o republicanismo. A democracia (demos kratia ou governo do povo) foi verdadeiramente a primeira expressão de um governo da cidade baseado na representatividade dos cidadãos. Qualquer cidadão do sexo masculino tinha direito à palavra nas Assembleias, bem como o direito de voto. Sólon, no séc. VI, aristocrata a quem foram dados plenos poderes pelos notáveis de Atenas depois de uma série de convulsões políticas, pôs em prática uma série de reformas legislativas e institucionais que conduziriam à democracia, nomeadamente a divisão da sociedade em classes cujo critério de hierarquização consistia no rendimento. Assim, os mais ricos tinham mais poder e representatividade no sistema, mas mesmo os cidadãos mais pobres podiam assistir às assembleias e usar da palavra. Para esse efeito, Sólon criou um conselho constituído por quatrocentos cidadãos, nos quais cada uma das quatro tribos da Atenas estava representada. Cada tribo elegia cem cidadãos da classe dita intermédia para a representar no Conselho. Foi ainda fundado um tribunal denominado Tribunal dos Heliatas aberto a todos os cidadãos de todas as classes – menos obviamente aos escravos -. A nível teórico, a filosofia grega veio abrir caminhos novos para a compreensão do político, e para o aprofundar de princípios demo/republicanos. Desde a República de Platão( Politeia no original grego), à Política de Aristóteles. No primeiro, o regime proposto subvertia a democracia, entendida por Platão como um regime perigoso e que facilmente degeneraria em tirania, pelo que, o melhor dos regimes era a Aristo kratia (governo dos melhores). Neste tipo de governo, a hierarquia era rígida e não existia mobilidade social. O aspecto novo e mais interessante consiste no governo dos filósofos, considerados os mais aptos para governar na medida em que são mais sábios e estão mais próximos da verdade. No caso de Aristóteles, a situação inverte-se. Ele queria um regime para homens, e não para deuses. Nessa medida, Aristóteles foi o primeiro a propor uma forma de governo com instituições muito próximas das ditas republicanas actuais, nomeadamente no que concerne à constituição de um senado representativo de todos os sectores da sociedade, bem como relativamente à separação de poderes. Roma haveria de concretizar muito daquilo que foi proposto por Aristóteles, bem como 2300 anos mais tarde os EUA, a França, a Inglaterra, e, por arrasto, toda a Europa.

Portugal, no ínicio do séc. XX, era um país de analfabetos e de elites estabelecidas e inertes. A revolução industrial teimava em chegar, e o fraco e incipiente sector primário era, a par das remessas dos emigrantes nas colónias, o motor da economia. Portugal era basicamente um país importador que gastava mais do que aquilo que tinha, e que se endividava continuamente, muito à semelhança do que se passa hoje. As relações com os britânicos, sobretudo depois da humilhação do ultimato de 1890, deteriorou-se largamente, e o exemplo em todos os aspectos políticos, sociais e culturais, era o da França republicana. Vigorava no nosso país uma monarquia constitucional desde a revolução vintista de 1820, que culminou nas Cortes Constituintes de 1822. O constitucionalismo tinha vindo desde essa altura a aprofundar-se assumindo um carácter cada vez mais parlamentarista. A constituição de 1822 era, na época, das mais progressistas da Europa, consagrando direitos e liberdades, instituindo as Cortes eleitas, consagrando a separação dos poderes judicial, executivo e legislativo, retirando privilégios à nobreza e ao clero, afirmando a legitimidade real como emanação da vontade da Nação, e não fruto de direito divino, e, sobretudo, a igualdade de todos os cidadãos – incluindo o Rei – perante a Lei. Na teoria e, em muitos aspectos também na prática, a monarquia constitucional portuguesa era já republicana. Uma monarquia, no sentido estrito, é o governo de um só (mono arkia). Nenhuma monarquia constitucional dos nossos dias é, em último análise, uma monarquia no sentido estrito. Será, no máximo, como diz um autor francês, uma monarquia rodeada de instituições republicanas. A novidade está, em larga medida, na substituição de um chefe de estado cuja legitimidade é hereditária, por um chefe de estado cuja legitimidade resulta do voto popular directo ou indirecto, e que não possui qualquer privilégio adquirido por nascimento. É interessante verificar o seguinte: países que assumiram progressivamente um regime de carácter parlamentarista, associado a uma sociedade civil cada vez mais forte e participativa, foram progressivamente esvaziando o papel do chefe de estado em detrimento do poder do parlamento. Isso aconteceu na Inglaterra e, em larga medida, em países como a Dinamarca ou a Suécia. Nos EUA, apesar do poder do presidente, este nada pode contra a vontade do Congresso e do Senado. Alguns destes países, nomeadamente a Inglaterra, esvaziaram o poder do rei e lograram criar um equilíbrio de forças que dispensou, em larga medida, o papel do mediador, ou seja, de um chefe de estado. Portugal, ao destruir o papel do moderador (o rei) e ao lançar-se num parlamentarismo cerrado e imaturo, conduziu a I República ao fracasso. Ainda que estivesse prevista a existência de um presidente da república, este tinha poucos ou nenhuns poderes, não lhe sendo sequer possível dissolver o parlamento, na medida em que a legitimidade daquele emanava deste. Ora, um regime republicano em Portugal não poderia dispensar o papel do mediador, ou seja, do chefe de Estado. Por isso, temos hoje um regime republicano de cariz semi-presidencialista.

Podemos afirmar que o projecto inicial da I Republica, baseado num parlamentarismo exacerbado, fracassou. Em nada melhorou o estado da nação e conduziu, em última análise, a uma ditadura (como curiosamente Platão prevê na Republica). É certo que existiram conquistas importantes, sobretudo no progresso das mentalidades e no reforço do poder civil em detrimento do poder das elites, da Igreja ou dos militares. Contudo, não teria o aprofundamento do liberalismo vintista e setembrista conduzido ao mesmo mais tarde ou mais cedo? Ou nada mudaria?

Desde a revolução americana que a expressão governo do povo, para o povo se tornou paradigmática da essência de um regime voltado à coisa pública. Portugal, mercê das suas fragilidades, da sua iliteracia, da inoperância de uma quase inexistente sociedade civil, não teve, na altura certa, base de apoio suficiente para sustentar um parlamentarismo sério e consistente. A verdadeira república, aquela a que todos aspiramos, é aquela na qual os cidadãos, através da sua participação activa, interessada e competente, tornem desnecessárias e obsoletas certas instituições de governo e controlo. Um Estado forte, não é um Estado de instituições fortes. É um Estado de cidadãos fortes, instruídos, autónomos e interessados. Só assim existe democracia; só assim há republica. Um Estado está doente quando as suas instituições cristalizam, e quando as pessoas já não se identificam com elas. Quando um Estado e demais instituições se divorciam das pessoas cuja missão é representar, ou o Estado muda, ou mudam-no as pessoas. Uma vezes mal, outras bem. Enquanto as pessoas, directa ou indirectamente, através da sua acção directa, ou através dos seus representantes eleitos, tiverem uma palavra a dizer na administração da coisa pública, então haverá republica.

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