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quinta-feira, julho 22, 2010

Utopias


O nosso tempo carece de utopias. Num ou noutro momento do séc. XX e XIX lá foram aparecendo algumas, como cogumelos, aqui e ali, e na maioria das vezes foram subvertidas - se não mesmo destruídas - por aqueles que se arvoraram no direito de as interpretar e pôr em prática à luz da sua pretensa infalibilidade.

Contudo, são as utopias abertas e não-concretizadas que merecem a nossa atenção. Nenhuma utopia deve ser simplesmente um presente mais-que-perfeito, um agora projectado no futuro expurgado de todos os seus defeitos e de exponenciadas virtudes. Uma utopia é mais que apenas uma época elevada a antecâmara do paraíso.

Uma utopia fechada, científica, torna-se numa ideologia e num meio de aprisionar a realidade. A realidade não pode ser aprisionada, delimitada em quatro paredes, rodeada de arame farpado. A realidade é sempre a primeira a revoltar-se, e no fim, sempre vence. As utopias do séc. XX tiveram sempre na sua base uma ideia do económico. Superar a escassez, dar pão a quem não tem, terminar com a exploração dos mais fortes pelos mais fracos. Daqui derivaram todo o tipo de socialismos e comunismos, e até capitalismos, que só pecaram por se tornarem reais e científicos.

Recuando no tempo, por exemplo, à República de um Platão, encontramos uma outra ideia, não apenas do material do pão para a boca, mas do espírito. É o reflexo de uma era de culto racional, sustentada por uma sociedade com poucas preocupações materiais, estribada que era por uma escravatura que tornava fúteis discussões de carácter meramente económico ou produtivo, ou mesmo de exploração do homem pelo homem, na medida em que tudo tendia a harmonizar-se na anulação de uns em prol da expansão de outros.

Qual pode ser hoje a nossa utopia? Que sonhos acarinhamos nós para o futuro? Que Humanidade? Quando falo em Humanidade estou já a querer arrastar no jugo da minha ideia uma entidade abstracta chamada “Humanidade”. Duas questões se colocam: não será a “Humanidade” feita de muitas humanidades?; que obrigação tem o resto da humanidade de seguir uma só ideia?

De onde vem esse enorme voluntarismo e altruísmo que certos ideólogos, revolucionários, utópicos aparentam quando pretendem interpretar a vontade do resto da humanidade, do “povo”, das “massas oprimidas”? Quantos males advieram deste voluntarismo que ninguém pediu. Quantas atrocidades se cometeram em nome do “povo”, das “massas”, da “humanidade”? Gostava que a Utopia do futuro, a verdadeira utopia, fosse em nome das pessoas. Pessoas é bastante menos ambíguo que povo, porque se refere aos indivíduos e não às massas amorfas e acríticas. O futuro vai por aí.

Fala-se tanto em revisão constitucional. Porque não começar por aí, substituindo o tão recorrente “em nome do povo”, “ao povo”, “para o povo”, pelo “em nome das pessoas”, “às pessoas”, “para as pessoas”? É toda uma diferença que vai desde o respeito que se tem pelo indivíduo cuja dignidade depende de uma abstracção, até ao respeito pelo indivíduo cuja dignidade está assegurada desde logo em si mesma, no ser indivíduo. É a diferença entre o mero rebanho, e a colectividade organizada. A utopia que interessa não pede voluntarismos nem seguidores. Antes pede voluntários e aderentes.

Por isto, nenhuma utopia verdadeira pode negar a mais importante das aspirações: seja qual for o sistema político, económico, social, o tipo de relação entre classes, a religião ou ideologia, nada é mais fundamental do que a realização intelectual, ética e humana de cada ser humano, no âmbito da esfera da sua individualidade irrepetível, bem como no de animal político (zoon politikon) que é. A realização e a liberdade das pessoas são o ponto de partida e de chegada de qualquer projecto de sociedade.

PS. De notar que em língua inglesa traduz-se por vezes a palavra people por povo, quando na realidade people significa sempre pessoas independentemente do contexto. O verdadeiro significado de Government by the people, for the people é Governo das pessoas, para as pessoas. É tudo uma questão de história e mentalidade...

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