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terça-feira, julho 27, 2010

"Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."


Na edição de hoje do JN deparei-me com a transcrição integral de um texto de José Saramago num pequeno caderno dedicado ao ambiente. Depois de uma breve pesquisa googliana, descobri que esta extraordinária reflexão acerca do mundo económico e social dos nossos tempos foi escrita por Saramago aquando do II Fórum Social na qual o mesmo participou, e onde a leu pela primeira vez. É absolutamente audaz e acutilante a crítica que o Nobel faz à democracia - ou antes à pantomina desta -, e o modo como procura levar-nos a reflectir acerca da lenta transformação que devemos à globalização e à hegemonia do económico e do financeiro. É raro eu transcrever textos de outros autores neste blog, mas este vale mesmo muito a pena.


Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de 400 anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e ação social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há 50 anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas 30 direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há 400 anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos fatos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os de certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.


Alocução de José Saramago no encerramento do II Fórum Social Mundial

quinta-feira, julho 22, 2010

Utopias


O nosso tempo carece de utopias. Num ou noutro momento do séc. XX e XIX lá foram aparecendo algumas, como cogumelos, aqui e ali, e na maioria das vezes foram subvertidas - se não mesmo destruídas - por aqueles que se arvoraram no direito de as interpretar e pôr em prática à luz da sua pretensa infalibilidade.

Contudo, são as utopias abertas e não-concretizadas que merecem a nossa atenção. Nenhuma utopia deve ser simplesmente um presente mais-que-perfeito, um agora projectado no futuro expurgado de todos os seus defeitos e de exponenciadas virtudes. Uma utopia é mais que apenas uma época elevada a antecâmara do paraíso.

Uma utopia fechada, científica, torna-se numa ideologia e num meio de aprisionar a realidade. A realidade não pode ser aprisionada, delimitada em quatro paredes, rodeada de arame farpado. A realidade é sempre a primeira a revoltar-se, e no fim, sempre vence. As utopias do séc. XX tiveram sempre na sua base uma ideia do económico. Superar a escassez, dar pão a quem não tem, terminar com a exploração dos mais fortes pelos mais fracos. Daqui derivaram todo o tipo de socialismos e comunismos, e até capitalismos, que só pecaram por se tornarem reais e científicos.

Recuando no tempo, por exemplo, à República de um Platão, encontramos uma outra ideia, não apenas do material do pão para a boca, mas do espírito. É o reflexo de uma era de culto racional, sustentada por uma sociedade com poucas preocupações materiais, estribada que era por uma escravatura que tornava fúteis discussões de carácter meramente económico ou produtivo, ou mesmo de exploração do homem pelo homem, na medida em que tudo tendia a harmonizar-se na anulação de uns em prol da expansão de outros.

Qual pode ser hoje a nossa utopia? Que sonhos acarinhamos nós para o futuro? Que Humanidade? Quando falo em Humanidade estou já a querer arrastar no jugo da minha ideia uma entidade abstracta chamada “Humanidade”. Duas questões se colocam: não será a “Humanidade” feita de muitas humanidades?; que obrigação tem o resto da humanidade de seguir uma só ideia?

De onde vem esse enorme voluntarismo e altruísmo que certos ideólogos, revolucionários, utópicos aparentam quando pretendem interpretar a vontade do resto da humanidade, do “povo”, das “massas oprimidas”? Quantos males advieram deste voluntarismo que ninguém pediu. Quantas atrocidades se cometeram em nome do “povo”, das “massas”, da “humanidade”? Gostava que a Utopia do futuro, a verdadeira utopia, fosse em nome das pessoas. Pessoas é bastante menos ambíguo que povo, porque se refere aos indivíduos e não às massas amorfas e acríticas. O futuro vai por aí.

Fala-se tanto em revisão constitucional. Porque não começar por aí, substituindo o tão recorrente “em nome do povo”, “ao povo”, “para o povo”, pelo “em nome das pessoas”, “às pessoas”, “para as pessoas”? É toda uma diferença que vai desde o respeito que se tem pelo indivíduo cuja dignidade depende de uma abstracção, até ao respeito pelo indivíduo cuja dignidade está assegurada desde logo em si mesma, no ser indivíduo. É a diferença entre o mero rebanho, e a colectividade organizada. A utopia que interessa não pede voluntarismos nem seguidores. Antes pede voluntários e aderentes.

Por isto, nenhuma utopia verdadeira pode negar a mais importante das aspirações: seja qual for o sistema político, económico, social, o tipo de relação entre classes, a religião ou ideologia, nada é mais fundamental do que a realização intelectual, ética e humana de cada ser humano, no âmbito da esfera da sua individualidade irrepetível, bem como no de animal político (zoon politikon) que é. A realização e a liberdade das pessoas são o ponto de partida e de chegada de qualquer projecto de sociedade.

PS. De notar que em língua inglesa traduz-se por vezes a palavra people por povo, quando na realidade people significa sempre pessoas independentemente do contexto. O verdadeiro significado de Government by the people, for the people é Governo das pessoas, para as pessoas. É tudo uma questão de história e mentalidade...

sábado, julho 17, 2010

Portugal indeciso é Portugal não cumprido



Nos últimos tempos, são muitas as confusões, indecisões e meias-medidas que caracterizam o rumo (incerto) desta nossa praia à beira mar plantada. E é disso mesmo que se trata. Urge redefinir Portugal, não redesenhando fronteiras ou limites, mas tentando perceber se, de facto, somos ainda um país no sentido clássico, independente, soberano, auto-determinado, ou se somos, cada vez mais, uma região mais ou menos periférica, lentamente dissolvida num federalismo crescente, cuja política e direito se abandonaram às directivas de um direito mais abrangente, e cuja autonomia económica é hoje heteronomia em relação às instituições financeiras internacionais e ao Mercado Global.

Temos de nos decidir. Temos de nos decidir, e rapidamente. E temos de nos decidir sob pena de nos enredarmos cada vez mais na teia do erro, na ilusão de uma hipotética soberania que já não existe, na falácia de uma autonomia eminentemente nacional que é hoje, em parte, apenas folclore pseudo-patriota.

Temos de escolher dois caminhos possíveis, para que possamos, com alguma acuidade e propriedade, criticar governos e políticas. Não podemos, em boa verdade, criticar um governo pelas decisões que toma, quando este é pouco mais do que um corpo administrativo ao serviço de instituições transnacionais em altas instâncias federalistas, ou tendencialmente federalistas. Não é sério atribuir a um governo poderes que ele há muito não tem, ou imputar-lhe a responsabilidade por más decisões que reflectem apenas pactos, PEC´S e PAC´S com o objectivo de o obrigar a prestar contas e a respeitar deficits em tempo recorde. Não é sério culpar governos por altas taxas de desemprego, por mau desempenho económico, pela miséria endémica de um pequeno estado, quando ao mesmo tempo este se vê obrigado por abstractas leis de mercado e por Tribunais de Justiça Europeus a escancarar as suas portas à circulação de capitais, aos movimentos financeiros, sempre sob ameaças de cotações negativas, de má fama internacional, de abandono do investimento estrangeiro. Não é sério culpar governos pela perda de direitos sociais e laborais dos seus cidadãos, quando só através da baixa de salários, do aumento do horário de trabalho, e da facilitação de despedimentos é possível aos governos corresponderem às solicitações cada vez mais insistentes e birrentas dos grupos económicos transnacionais, que ameaçam a cada minuto abalar para pastagens mais verdes, onde os custos do trabalho e a responsabilidade social é quase nula.

Com isto não estou a afirmar, nem de longe nem de perto, que os governos sejam inimputáveis. Pelo contrário. Eles têm culpa, sobretudo ao alimentarem ilusões e ao fazerem promessas que, certamente, não serão capazes de cumprir. Seria mais sério que assumissem, desde o início, uma atitude pedagógica, explicando os verdadeiros limites dos seus poderes, e jamais prometendo aquilo que a própria conjuntura institucional não lhes permite cumprir. Mas esta falta de escrúpulos é acompanhada, para nosso prejuízo, por uma terrível falta de inteligência e de visão. Essa visão permitir-lhes-ia perceber o que está verdadeiramente errado nisto tudo, ao mesmo tempo que lhes daria uma verdadeira ideia ou plano para o país.

Por isso eu digo e repito: é preciso tomar decisões a sério, sem subterfúgios. O que queremos e podemos ser? Qualquer que seja a decisão tem de ser assumida para o bem e para o mal, sem meias medidas, panos quentes ou marketing.

Queremos ser proteccionistas e voltar ao clássico Estado-Nação, cerrar fronteiras, implementar taxas alfandegarias, promover a absoluta auto-suficiência, proibir as empresas de ir para o estrangeiro, sair da UE, recuperar uma total autonomia? Pois, se sim, então assuma-se. Por outro lado, queremos ser abertos, abrir fronteiras, abdicar progressivamente de uma autonomia política, económica, social, em prol de uma futura união federal de estados de direito baseados no primado da Lei e da Democracia? Pois, se sim, voltemos a assumir tal decisão com vontade, consistência e sem desculpas. Queremos, num plano intermédio, encontrar uma terceira-via menos maniqueísta? Mais uma vez, sejamos inteligentes nessa tentativa e assumamos todas as consequências de tal decisão, para o bem e para o mal.

O que está a matar Portugal (e a Europa) é precisamente esta recorrente indecisão que tudo paralisa e que não traz qualquer progresso a ninguém. A própria União Europeia e o seu projecto estão reféns de interesses cada vez mais díspares, e ao invés de uma verdadeira união aberta constituída de estados fortes e solidários entre si, caminhamos para uma Europa coxa, na qual uns estados vão assumindo uma preponderância cada vez maior, defendendo em relação a si mesmos aquilo que condenam para os outros, influenciando as instituições europeias que deveriam ser imparciais e equilibradas em termos de representatividade, mas que, em última análise, estão contaminadas pelos interesses dos governos mais influentes que, por sua vez, se deixam manipular por forças económicas e financeiras muito pouco consentâneas com os princípios da verdadeira solidariedade e do progresso.

Pois, assume-te Portugal, se te queres cumprir.

domingo, julho 11, 2010

Aforismos e meditações dispersas




Mais importante do que acreditares em Deus, é Deus acreditar em ti.


Tu és o primeiro agente da mudança, o teu próprio Messias.


As grande pirâmides ensinam que nada de verdadeiramente grandioso é possível sem sangue, suor e lágrimas.


Um dia, de pé em cima de uma rocha em frente ao mar, seguia um barco que se afastava do cais, cada vez mais longe confundia-se com o horizonte indeterminado. Quando menos esperava, escorreguei e caí desamparado do promontório numa fracção de segundos. Com as pernas e os braços esmurrados, levantei-me e compreendi: aquele que não está preparado para ver o horizonte, e mesmo para além deste, há-de cair sempre até que o hábito de subir o promontório lhe enrijeça os músculos, a vontade e a sensibilidade.


Antes de pretenderes ser feliz, pretende ser sereno. Estar sereno e conciliado com o mundo – é isso que deve procurar.


O mundo é terrivelmente imprevisível, e a consciência dessa imprevisibilidade conduz-nos a um estado permanente de preocupação e insónia. De um momento para outro podemos perder alguém que amamos, o emprego que nos traz pão para a mesa, o estatuto ou a reputação. A roda da fortuna é implacável no seu movimento. A tua vida pode ser uma luta constante contra o imprevisível; podes muralhá-la toda de várias maneiras: isolando-te dos outros, lendo fábulas, não saindo de casa, ou até reescrevendo o mundo numa metafísica que satisfaça a tua necessidade de ordem e previsibilidade. Há milhares de desculpas possíveis para evitar o perigo. Quanto mais o fizeres mais medo terás do mundo. Chegarás a um ponto em que a própria ideia de sair das tuas quatro paredes te enche de temor. Nesse dia morreste antes de morreres. Preparas o teu corpo para as quatro tábuas que substitituirão as quatro muralhas que à tua volta ergueste.


Na vida há dois tipos de problemas: os que têm solução, e os que não têm. Os que têm solução devem ser abordados com a mesma frieza com que se aborda um problema matemático, ou um puzzle. Só podemos resolver aquilo que está ao nosso alcance resolver. Assim, quando um problema não tem solução, devemos aceitar e assumir com a mesma frieza as nossas próprias limitações e tentar, na medida das nossas possibilidades, integrar o problema na nossa vida de modo a que se ajuste o melhor possível na nossa condição de seres humanos. O primeiro passo para resolver um problema, é colocá-lo. Não podemos dar respostas precisas sem formular perguntas precisas.


Os problemas podem surgir-nos a um nível superficial, mas todos os problemas derivam de outros problemas mais profundos. Por vezes, há pequenos problemas que vão surgindo e que, na mesma medida, vamos resolvendo. Contudo, eles continuam a surgir incessantemente. Porquê? Porque derivam de um problema maior cuja resolução é mais complexa, e cuja formulação exige um esforço maior por parte do indivíduo. O mesmo acontece com as ervas daninhas. Por mais que as arranquemos, elas continuam a surgir. Se utilizarmos herbicida é possível que tenhamos algum sucesso, ainda que temporário, pois as raízes manter-se-ão mais ou menos intocadas e acabarão por dar origem a mais ervas daninhas, mais fortes e resistentes que as primeiras. Portanto, para eliminar definitivamente as ervas daninhas, só arrancando as próprias raízes e eliminando da terra quaisquer sementes que possam existir.


Conquista os teus vícios; cultiva as tuas virtudes.


O homem de hoje já não conhece nem celebra o carácter litúrgico da vida. Cada dia é apenas mais um no correr das semanas, meses e anos. Já não se sacraliza o nascer do sol como a vitória da luz sobre as trevas, nem o banho matinal como um novo baptismo que purifica e renova através da água o corpo e o espírito. Neste aspecto temos tudo a aprender com civilizações ditas “arcaicas”.


A primeira das prerrogativas para se atingir um patamar considerável de serenidade consiste em aprender a não estar só. O sentido de pertença a uma comunidade é reconfortante por garantir apoio e entre-ajuda em qualquer circunstância, o que reduz a dor da imprevisibilidade. A comunidade garante, em princípio, o exercício da amizade e da lealdade para com os outros, bem como o seu reconhecimento e afecto para connosco. A partilha dos medos torna-os mais suportáveis, e o mesmo acontece com o sofrimento e a dor. Isto não retira importância ao estar só. Estar sozinho é também muitas vezes uma necessidade fundamental para o auto-conhecimento e clarificação das próprias ideias e objectivos. Contudo, é grande a diferença entre estar só e estar isolado. A pertença a uma comunidade, para ser verdadeiramente frutuosa, tem de partir de um acto voluntário de adesão, e o mesmo se passa com a vontade de estar só. A verdadeira pertença implica que o indivíduo seja capaz de ser ele mesmo no seio do grupo, estando perfeitamente à vontade para agir segundo as suas próprias idiossincrasias sem, como é óbvio, desrespeitar os restantes membros da comunidade. Um ser humano isolado dificilmente é feliz.


A razão nem sempre nos leva por caminhos fáceis. É o preço a pagar por se escolher a verdade, ainda assim muito menor que o preço a pagar por se persistir no erro.


Quando somos crianças não existe metafísica. O tempo não existe, nem responsabilidade, nem nada mais que o jogo que se joga, a corrida que se dá, a história que se inventa. Há uma felicidade inquestionável e inconsciente de si mesma no acto de brincar, um sentimento de completude no qual se esbatem todas as preocupações do passado ou do futuro. Quando nos tornamos adultos, andamos toda a vida à procura deste sentimento, e chamamos-lhe felicidade. Porquê? Porque não soubemos encontrar ainda o ponto de equilíbrio. Há pessoas que prorrogam o fim da sua infância até demasiado tarde, e outros, por força das circunstâncias, demasiado o antecipam. No primeiro, toda a sua vida é um esforço e uma frustração na tentativa de retornar ao passado dessa infância perdida; no segundo, toda a sua vida é esforço e frustração na tentativa de viver a infância que nunca conheceu verdadeiramente. Ambos, não vivem a sua idade como deveriam. Vivem antes uma idade que não é a sua.


O Deus da Bíblia é a projecção de uma humanidade


Em todo o mito ou cosmogonia está patente um princípio divino para a criação e a existência.


Essa divindade assenta no carácter absolutamente misterioso da existência.


O Deus de hoje é ele mesmo símbolo e metáfora de um princípio divino imanente a tudo. Esse princípio é movimento, procura de equilíbrio, liberdade e criatividade, criação e destruição. Os deuses são as forças que constituem o próprio universo. Conhecidas essas forças, explicadas e definidas pela ciência, resta o indefinível. Todas as forças fazem parte de outras forças, mais complexas, que por sua vez remetem para um única força, incognoscível. Essa força parece esconder um finalidade, uma intencionalidade última que nos é completamente alheia, mesmo que procuremos intuí-la através da razão, da metafísica, ou mesmo do esvaziamento mental. Essa finalidade é Deus, na sua matriz derradeira. A vida, ou seja, nós seres humanos, partilhamos dessa finalidade, somos expressão de uma dessas poderosas forças do universo que ainda não conseguimos definir. O deus da vida é a alma, porque a própria força da vida continua indefinível aos olhos de qualquer ciência. Será a vida apenas o resultado da soma das componentes físicas, de aglomerados celulares e relações neuronais, ou algo mais? Será o corpo apenas uma máquina aperfeiçoada por milhares de milhões de anos de evolução biológica, de tentativas e erros, de selecção natural? É possível que sim, mas isso não dessacraliza o valor da vida e o seu mistério. A vida complexa é o resultado da vida simples, mas continuamos sem saber o que é a vida. O que permite que um complexo orgânico, constituído essencialmente por átomos de carbono, hidrogénio, oxigénio e azoto, possua autonomia de movimentos e seja capaz de gerar pensamentos ou ideias? Como é possível que esse mesmo aglomerado seja capaz de reflectir sobre si mesmo e dizer “eu sou”. É admirável e misterioso. Que admirável mundo novo é esse o da consciência... Que admirável e notável maquinaria biológica permite que um aglomerado orgânico abra os olhos e “acorde” para a sua existência e a do mundo. O que lhe permite fazer poesia, ou escrever sinfonias? O que lhe permite fazer ciência, elaborar teorias baseadas em relações matemáticas ou lógicas? O que lhe permite ter fé ou ideais abstractos? Claro que a vida de que falo é apenas uma parte muito ínfima do conjunto de toda a vida conhecida. O fenómeno da vida é incrivelmente variável e complexo, manifesta-se das formas mais insuspeitas e inimagináveis, adapta-se a diversos meios e ecossistemas. Além de ser das mais ubíquas – pelo menos no que respeita ao nosso mundo -, é das forças mais persistentes e duradouras. Uma vez surgida dificilmente é eliminada completamente. Foram várias as extinções em massa e os momentos em que a vida esteve quase a desaparecer da face da Terra. Porém, ela recuperou e prevaleceu, instituindo o seu domínio sobre a Terra uma e outra vez. O mesmo acontecerá no futuro, se não neste planeta noutro concerteza. É caso para perguntar, qual a importância da vida para a finalidade do universo? Porquê a inevitabilidade da vida? Aquilo que é divino é aquilo que é último, e que, por ser último é ao mesmo tempo primeiro. Deus é o princípio e o fim. É o Alfa e o Ómega.

sexta-feira, julho 02, 2010

...sem ideias, não vamos a parte nenhuma"



"Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de refexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma."
José Saramago em Entrevista ao Expresso, 2008


Pois é. Agora que Saramago se exilou para sempre num qualquer Lanzarote celestial, deixou de ser aquele que incomoda com o seu pensar, único e senhor de si, para se tornar património de todos. Do país e da Humanidade, há quem diga. Chegará talvez o dia em que a UNESCO declarará pessoas ou obras individuais como património da Humanidade. É o chamado património imaterial do qual faz parte a literatura, a filosofia, a ciência pura.

Sempre que morre um homem, sobretudo se é grande, logo nasce o mito que o fará ainda maior. Cada um encontra agora na sua obra um qualquer pedaço de si mesmo. Eu, ainda que tenha estado muitas vezes em completo desacordo com o indivíduo, não posso deixar de sublinhar que, no fim de contas, há um aspecto de atitude que não pode ser posto de lado e que tem todo o valor. Esse aspecto está reflectido na citação em epígrafe.

Pensar. Reflectir. Perante as investidas dogmáticas de muitos sectores da nossa sociedade, sejam religiosos, políticos, económicos ou outros; perante o persistente desencorajar ao acto de perguntar, de contradizer, de pôr em causa, posto em prática pelas ordens, hierarquias, autoridades; perante as ideias que se vendem todos os dias, já empacotadas e com livros de instruções, de fácil mastigação e digestão, ideias que cada indivíduo toma como suas sem lhe ter colocado no caminho grandes resistências, cedendo facilmente às “autoridades”, aos “bem-falantes”, aos muitos vendedores de sonhos que por aí pululam cada vez mais; perante tudo isto, perante um geral adormecimento – não é inocente a imagem da cegueira geral posta em evidência sua obra Ensaio sobre a Cegueira – é urgente reabilitar as pessoas com essa extraordinária faculdade de pensar, individual e colectivamente. Não é inocente esta ideia de que a cegueira endémica de uma sociedade inteira conduz ao desastre, ao desmoronamento em bloco de uma civilização assente em pés-de-barro. Uma sociedade que baseia a sua existência numa concepção do indivíduo como consumidor, produto e produtor, que investe grande parte das suas energias no aperfeiçoamento da propaganda, da publicidade, na sugestão de necessidades supérfluas e perfeitamente acessórias, no engano, não está esta sociedade a “cegar” o homem um pouco todos os dias?

Agora que penso no assunto, talvez Saramago pretendesse sugerir o contrário. A cegueira não corresponde ao adormecimento, mas, pelo contrário, ao verdadeiro acordar. Pois, é no momento em que os homens cegam que a sociedade se desmorona. Por não serem capazes de ver, os indivíduos estão afastados da influência agressiva da propaganda visual, da sugestão, da publicidade. Estando a civilização assente nos alicerces deste poder sugestivo, não pode subsistir quando os indivíduos lhe são completamente indiferentes. Isto é só a minha interpretação...

Pensar é correr o risco de ser subversivo. É instalar a divisão onde antes existia coesão. Ao longo da história, muitos nacionalismos foram fundados no sacrifício da autonomia individual. Por vezes, no desespero de manter a coesão, sacrificaram-se aqueles que pensavam diferente, queimavam-se os seus livros, quando não se queimavam os próprios que os escreveram. O tempo revelou a fragilidade desta coesão falsa e com pés-de-barro. Pensar é correr o risco de dividir, mas nunca com o intuito de reinar. Dividir para fundar novos tipos de coesão, mais verdadeiros, assentes na autonomia de pensamento, na liberdade que é também razão. Talvez seja esta a proposta de muitos filósofos que, desde Kant, falam em comunidades de razão, ou em comunidades de comunicação (Karl Otto Apel).

Sim, esses espaços de reflexão de que fala Saramago são olhados de través por quem preza acima de tudo a estabilidade. Porque pensar, quando é sério e feito com boa-vontade, quando é fundado em argumentos límpidos, quando é estruturado numa rede lógica coerente, abre novos caminhos e possibilidades. O perigo vem da cristalização das ideias em ideologias, porque frequentemente as ideias são postas em prática, não por quem as imaginou em primeira instância, não por quem compreendeu o seu verdadeiro alcance – como quem diz limites -, mas por quem as tomou para si como dogmas fechados imunes à crítica, subvertendo toda a atitude que está na base do pensamento sério, límpido e baseado na boa-vontade.

Porque, pensar é também agir. Agostinho da Silva dizia ser indissociável o pensar e o agir, as duas faces do Pensamento. Um homem coerente age de acordo com aquilo que pensa. Se o mundo vai mal, é porque há muito quem pense sem agir, e muito quem aja sem pensar.

5 anos



No passado dia 13 de Junho este blog completou 5 anos de existência. Por minha culpa, por minha tão grande culpa, não lhe prestei nesse dia a devida homenagem. Por isso – e pondo em prática a tese de Ricardo Rodrigues (o sequestrador de gravadores) segundo a qual o que interessa é celebrar a Liberdade, nem que seja a 26 de Abril – dou hoje conta desse mesmo facto.

Esquecer-me do blog foi apenas uma consequência de me ter esquecido de mim. Também fiz anos dia 22 e nem sequer o celebrei. Sim, tenho 25 anos.

Graças às novas funcionalidades do blogger, tive oportunidade de “vestir” o cenáculo com outras vestes, dar-lhe um novo visual, lavar-lhe a cara. Se mudou na aparência, nada mudou na essência.

Obrigado mais uma vez a todos os que o lêem, ainda que muito raramente o comentem. É pena. Preferia que os leitores deste sítio virtual fossem um pouco mais participativos, sugerissem e até criticassem mais. Só tinha a ganhar com isso.

E para quem ainda tiver dúvidas de que este blog é lido - e lido em todo o mundo -, nada como dar uma vista de olhos ao mapa do Histats em cima. Os pontos vermelhos falam por si.

Ruben