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domingo, dezembro 12, 2010

Dia Mundial dos Direitos Humanos - 10 de Dezembro

Para os mais distraídos, para os que nunca ouviram falar, ou se ouviram nunca prestaram a devida atenção, transcrevo na íntegra os trinta artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ratificada pela Assembleia Geral das Nações Unidas no ano de 1948.


Preâmbulo

Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em actos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,

Considerando essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito, para que o homem não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão,

Considerando essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações,

Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana e na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,

Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a desenvolver, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,

Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mis alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso,

A Assembleia Geral proclama

A presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objectivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adopção de medidas progressivas de carácter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efectivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

Artigo 1°
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 2°
Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação.
Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania.

Artigo 3°
Todo o indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

Artigo 4°
Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.

Artigo 5°
Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Artigo 6°
Todos os indivíduos têm direito ao reconhecimento, em todos os lugares, da sua personalidade jurídica.

Artigo 7°
Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual protecção da lei. Todos têm direito a protecção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo 8°
Toda a pessoa tem direito a recurso efectivo para as jurisdições nacionais competentes contra os actos que violem os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei.

Artigo 9°
Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Artigo 10°
Toda a pessoa tem direito, em plena igualdade, a que a sua causa seja equitativa e publicamente julgada por um tribunal independente e imparcial que decida dos seus direitos e obrigações ou das razões de qualquer acusação em matéria penal que contra ela seja deduzida.

Artigo 11°

1. Toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.

2. Ninguém será condenado por acções ou omissões que, no momento da sua prática, não constituíam acto delituoso à face do direito interno ou internacional. Do mesmo modo, não será infligida pena mais grave do que a que era aplicável no momento em que o acto delituoso foi cometido.


Artigo 12°
Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a protecção da lei.

Artigo 13°

1. Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado.

2. Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.

Artigo 14°

1. Toda a pessoa sujeita a perseguição tem o direito de procurar e de beneficiar de asilo em outros países.

2. Este direito não pode, porém, ser invocado no caso de processo realmente existente por crime de direito comum ou por actividades contrárias aos fins e aos princípios das Nações Unidas.

Artigo 15°

1. Todo o indivíduo tem direito a ter uma nacionalidade.

2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua nacionalidade nem do direito de mudar de nacionalidade.

Artigo 16°

1. A partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou religião. Durante o casamento e na altura da sua dissolução, ambos têm direitos iguais.

2. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos futuros esposos.

3. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à protecção desta e do Estado.

Artigo 17°

1. Toda a pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade.

2. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade.

Artigo 18°
Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.

Artigo 19°
Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e idéias por qualquer meio de expressão.

Artigo 20°

1. Toda a pessoa tem direito à liberdade de reunião e de associação pacíficas.

2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

Artigo 21°

1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direcção dos negócios, públicos do seu país, quer directamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos.

2. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país.

3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos: e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto.

Artigo 22°
Toda a pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social; e pode legitimamente exigir a satisfação dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis, graças ao esforço nacional e à cooperação internacional, de harmonia com a organização e os recursos de cada país.
Artigo 23°

1. Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à protecção contra o desemprego.

2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual.


3. Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de protecção social.

4. Toda a pessoa tem o direito de fundar com outras pessoas sindicatos e de se filiar em sindicatos para defesa dos seus interesses.

Artigo 24°
Toda a pessoa tem direito ao repouso e aos lazeres, especialmente, a uma limitação razoável da duração do trabalho e as férias periódicas pagas.
Artigo 25°

1. Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade.

2. A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma protecção social.

Artigo 26°

1. Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito.

2. A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das actividades das Nações Unidas para a manutenção da paz.

3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escholher o género de educação a dar aos filhos.

Artigo 27°

1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.

2. Todos têm direito à protecção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.

Artigo 28°
Toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efectivos os direitos e as liberdades enunciadas na presente Declaração.
Artigo 29°

1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade.

2. No exercício destes direitos e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.

3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente aos fins e aos princípios das Nações Unidas.

Artigo 30°
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada de maneira a envolver para qualquer Estado, agrupamento ou indivíduo o direito de se entregar a alguma actividade ou de praticar algum acto destinado a destruir os direitos e liberdades aqui enunciados.

terça-feira, dezembro 07, 2010

«A DESCENTRALIZAÇÃO É A CONDIÇÃO IMPRETERÍVEL DA ADMINISTRAÇÃO DO PAÍS PELO PAIS» - Carta de Herculano



Porque achei por demais interessante, transcrevo aqui a carta que Alexandre Herculano escreveu aos eleitores do círculo eleitoral de Sintra quando estes o elegeram deputado. É uma análise correcta e actual do estado do sistema político dos meados do séc. XIX, nomeadamente no que concerne à burocracia, ao centralismo acéfalo, ao partidarismo clientelista. Parece até que fala para directamente para nós desde os idos cinquenta do séc. XIX. Vale a pena ler até ao fim.



«A DESCENTRALIZAÇÃO É A CONDIÇÃO IMPRETERÍVEL DA
ADMINISTRAÇÃO DO PAÍS PELO PAIS»

Sr. Redactor:

Tendo estado ausente no campo alguns dias por negócios particulares achei, voltando a Lisboa, retardada no correio a comunicação oficial da minha eleição de deputado pelo círculo 26. Decidido a não aceitar aquela honrosa missão, era do meu dever dar imediata razão de mim a quem assim me dera uma prova de apreço. Tardei talvez, mas a culpa foi involuntária. da sua amizade espero que, dando quanto antes lugar no seu jornal à inclusa carta, me ajude a remir de modo possível a minha falta.



Senhores eleitores do círculo eleitoral de Sintra.

Acabais de me dar uma demonstração de confiança, escolhendo-me para vosso procurador no parlamento: sinto que me não seja permitido aceitá-la.

Se tal escolha não foi uma daquelas inspirações que vêm ao mesmo tempo ao espírito do grande número, o que é altamente improvável, porque o meu nome deve ser desconhecido para muitos de vós; se alguém, se pessoas preponderantes nesse círculo, pelo conceito que vos merecem, vos apresentaram a minha candidatura, andaram menos prudentemente, fazendo-o sem me consultarem, e promovendo uma eleição inútil.

Há anos que os eleitores de um círculo da Beira, na sua muita benevolência para comigo, pretenderam fazer-me a honra que me fizestes agora. Um deles, um dos mais nobres, mais puros e mais inteligentes caracteres dos muitos que conheço, sumidos, esquecidos, nessa vasta granja da capital chamada – as províncias –, encarregou-se de vir a Lisboa consultar-me. Respondi-lhe como a consciência me disse que lhe devia responder, e o meu nome foi posto de parte. De Sintra a Lisboa, é mais perto, e a comunicação mais fácil, do que dos remotos e quase impérvios sertões da Beira.

Duas vezes nos comícios populares, muitas na imprensa tenho manifestado a minha íntima convicção de que nenhum círculo eleitoral deve escolher para seu representante indivíduo que lhe não pertença; que por larga experiência não tenha conhecido as suas necessidades e misérias, os seus recursos e esperanças; que não tenha com os que o elegeram comunidade de interesses, interesses que variam, que se modificam, e até se contradizem, de província para província, de distrito para distrito, e às vezes de concelho para concelho. Esta doutrina, posto que tenha vantagem no presente, reputo-a sobretudo importante pelo seu alcance, pelos seus resultados em relação ao futuro. É, no meu modo de ver, o ponto de Arquimedes, um fulcro de alavanca, dado o qual as gerações que vierem ‑depois de nós poderão lançar a sociedade num molde mais português e mais sensato do que o actual, inutilizando as cópias, ao mesmo tempo servis e bastardas, de instituições peregrinas, que em meio século têm dado sobejas provas na sua terra natal do que podem e do que valem para manterem a paz e a ordem públicas, e mais que uma honesta liberdade.

Durante meses, no decurso de dois anos, tive de vagar pelos distritos centrais e setentrionais do reino. Pude então observar amplamente quantas misérias, quanto abandono, quantos vexames pesam sobre os habitantes das províncias, principalmente dos distritos rurais, como o vosso, que constituem a grande maioria do país. Vi com dor e tristeza definhados e moribundos os restos das instituições municipais que o absolutismo nos deixara: vi com indignação essas solenes mentiras a que impiamente chamamos instrução primária e educação religiosa: vi a agricultura, a verdadeira indústria de Portugal, lidando inutilmente por desenvolver-se no meio da insuficiência dos seus recursos; vi, em resultado dos erros económicos que pululavam na nossa legislação, a má organização da propriedade territorial e a desigualdade espantosa na distribuição das populações rurais, precedida da mesma origem, e dando-nos ao sul do reino uma imagem das solidões sertanejas da América, e ao norte uma Irlanda em perspectiva: vi a injusta repartição e a pior aplicação dos tributos e encargos: vi a falta de segurança pessoal e real, especialmente nos campos, onde o homem é obrigado a confiar só em si e em Deus para obter: vi um sistema administrativo mau por si e péssimo em relação a Portugal, com uma hierarquia de funcionários e uma distribuição de funções que tornam remotas, complicadas, gravosas, e até impossíveis, a administração e a justiça para as classes populares, e incómodas e espoliadoras para as altas classes: vi, sobretudo, a falta da vida pública, a concentração do homem na vida individual e de família, que é ao mesmo tempo causa e efeito da decadência dos povos que se dizem livres: vi todos esperarem e temerem tudo do governo central; confiarem nele, como se fosse a Providência; maldizerem-no, como se fosse o princípio mau: ideias completamente falsas, posto que bem desculpáveis num país de centralização; ideias que significam uma abdicação tremenda da consciência de cidadão, e da actividade humana, e que são o sintoma infalível de que os males públicos procedem, não da vontade deste ou daquele indivíduo, da índole particular desta ou daquela instituição, mas sim do estado moral da sociedade e da índole em geral da sua organização.

E isto que vi perspicuamente, apesar de uma observação transitória, vêem-no todos os dias, palpam-no, e, o que mais é, padecem-no centenares de homens honestos e inteligentes que vivem obscuramente por essas vilas e aldeias de Portugal. Como os seus vizinhos, eles são vítimas da nossa absurda organização; disso a que por antífrase chamamos administração e governo. É entre tais homens que os círculos deveriam escolher os seus representantes; é entre eles que os escolherão por certo no dia em que compreenderem que o direito eleitoral é uma espada de dois gumes com que os cidadãos estão armados para se defenderem a si e aos seus filhos, mas com que também podem assassinar-se e assassiná-los. Foi o que disse a todos aqueles, e não foram poucos, que durante a minha peregrinação pareceram confiar, se não no valor das minhas opiniões, ao menos na sinceridade delas. Interrogado acerca do lenitivo que supunha possível para os males que presenciava, indiquei sempre, não como remédio definitivo, mas como preparação para ele, como instrumento de uma reforma futura, a eleição exclusivamente local e os esforços constantes para obter, contra o interesse das facções, -dos partidos e .dos governos, a redução dos grandes círculos a círculos de eleição singular, que um dia possam servir à restauração da vida municipal, da expressão verdadeira da vida pública do país, e de garantia da descentralização administrativa, como a descentralização administrativa é a garantia da liberdade real.

Fortes tendências para a eleição da localidade se manifestam já por muitas partes, e os governos e as parcialidades vêem-se constrangidos a transigir com esse instinto salvador. Se não me é lícito gloriar-me de ter contribuído para ele se desenvolver, ser-me-á lícito, ao menos, aplaudi-lo. É o primeiro passo no caminho do verdadeiro progresso social: cumpre não recuar.

Mas, pensando assim, como poderia eu, sem desmentir a minha consciência e as minhas palavras; sem trair a verdade, sem vos trair a vós próprios, aceitar em silêncio o vosso mandato? É honroso merecer a confiança dos nossos concidadãos, mas é mais honroso viver e morrer honrado.

Não haverá no meio de vós um proprietário, um lavrador, um advogado, um comerciante, qualquer indivíduo, que, ligado convosco por interesses e padecimentos comuns, tenha pensado na solução das questões sociais, administrativas e económicas que vos importam; um homem de cuja probidade e bom juízo o trato de muitos anos vos tenha certificado? Há, sem dúvida. Porque, pois, não haveis de escolhê-lo para vosso mandatário?

Os que não vêem como eu nesta ideia da representação exclusivamente local o primeiro elo de uma cadeia de transformações, que serão ao mesmo tempo administrativas e políticas, podem, sem desdouro, não só aceitar, mas até solicitar os vossos votos. Ninguém deve aferir os seus actos livres senão pelas próprias opiniões, pelas doutrinas que tem propugnado. Aferir pelas minhas ideias o meu proceder é o que unicamente faço.

Recusando o vosso favor, nem por isso vo-lo agradeço menos; e a prova é que vo-lo retribuo com estes conselhos, que não serão bons, mas que evidentemente são desinteressados. Da confiança que mostrastes ter em mim deriva o meu direito a dar-vo-los.

Aconselho-vos, como acabais de ver, uma coisa para a qual os estadistas de profissão olham com supremo desprezo, a eleição de campanário, só a eleição de campanário, a eleição de campanário, permiti-me a expressão, até à ferocidade.

Não sei se podereis sofrer o afrontoso ridículo que anda associado à doutrina que vos inculco. Eu posso. Em mim este alto esforço é o hábito que resulta de longo trato. A aguda e graciosa invectiva de deputado de campanário tem cãs veneráveis. Conheço-a há muitos anos. Além dos Pirinéus andava já em serviço dos ambiciosos, dos oficiais de política há bem meio século. Os nossos políticos encartados traduziram-na para seu uso. É que, assim como traduzem leis, traduzem o mais, posto que, se me é lícito dizê-lo, o façam mal, muito mal, de ordinário.

Indubitavelmente este país transborda de homens grandes, de profundos estadistas. Aqui o estadista nasce, como nasce o poeta; precede a escolha: dispensa-a, até. Sou o primeiro a confessá-lo. E a paixão dos homens grandes, dos profundos estadistas, é a salvação da pátria: é a sua vocação, o seu destino, a sua suprema felicidade. Esses varões ilustres pertencem, porém, ao país: é do país que devem ser deputados. Entendem-no eles assim, e parece-me que entendem bem. Em tal caso, eleja-os o país. Quando algum vos mendigar de porta em porta, e com o chapéu na mão, os vossos votos, respondei-lhe, como os eleitores dos diversos círculos do reino lhe responderiam, se o são juízo fosse uma coisa desmesuradamente vulgar:

«Somos uma pobre gente, que apenas conhecemos as nossas necessidades, e queremos por mandatário quem também as conheça e que nelas tenha parte; quem seja verdadeiro intérprete dos nossos desejos, das nossas esperanças, dos nossos agravos. Se os deputados dos outros círculos procederem de uma escolha análoga, entendemos que as opiniões triunfantes no parlamento representarão a satisfação dos desejos, o complemento das esperanças, a reparação dos agravos da verdadeira maioria nacional sem que isto obste a que se atenda aos interesses da minoria, que aí se acharão representados e defendidos como se representa e defende uma causa própria. Na vulgaridade da nossa inteligência, custa-nos a abandonar as superstições de nossos pais: cremos ainda na aritmética, e que o país não é senão a soma das localidades. Homem do absoluto, das vastas concepções, se a vossa abnegação chega ao ponto de solicitar a deputação do campanário, fazei que vos alejam aqueles que vos conhecem de perto, que podem apreciar as vossas virtudes, o vosso carácter. Certamente vós habitais nalguma parte. Se não quereis abater-vos tanto, arredai-vos da sombra do nosso presbitério, que ofusca o brilho do vosso grande nome. Sede, como é razão que sejais, deputado do país. Não temos para vos dar senão um mandato de campanário.»

A resposta dos eleitores aos estadistas parece-me que deveria ser esta.

A eleição de campanário é o sintoma e o preâmbulo de uma reacção descentralizadora, é a condição impreterível da administração do país pelo país, e a administração do país pelo país é a realização material, palpável, efectiva da liberdade na sua plenitude, sem anarquia, sem revoluções, de que não vem quase nunca senão mal. Para obter este resultado, é necessário começar pelo princípio; é necessário que a vida pública renasça.

Na verdade, a doutrina de que o excesso de acção administrativa, hoje acumulada, deve derivar em grande parte do centro para a circunferência repugna aos partidos, e irrita-os. Sei isso, e sei porquê. Os partidos, sejam quais forem as suas opiniões ou os seus interesses, ganham sempre com a centralização. Se não lhes dá maior número de probabilidades de vencimento nas lutas do poder, concentra-as num ponto, simplifica-as, e, obtido o poder, a centralização é o grande meio de o conservarem. Nunca esperem dos partidos essas tendências. Seria o suicídio. Daí vem a sua incompetência, e nenhuma autoridade do seu voto nesta matéria. É preciso que o país da realidade, o país dos casais, das aldeias, das vilas, das cidades, das províncias acabe com o país nominal, inventado nas secretarias, nos quartéis, nos clubes, nos jornais, e constituído pelas diversas camadas do funcionalismo que é, e do funcionalismo que quer e que há-de ser.

A centralização tem ido até às Saturnais. A hierarquia administrativa chegou já, por exemplo, a arrogar-se o direito de declarar suspensas ou em vigor as leis civis e criminais do reino e a acção dos tribunais. Lede o artigo 357 ° do Código Administrativo e estudai a sua jurisprudência, que haveis de ficar edificados. Vede se algum governo, se algum grande estadista, saído de qualquer parte, propôs a sua revogação. Não o espereis jamais.

O poder que pela imunidade do funcionário criminoso, que pelo monopólio na distribuição e todas as funções retribuídas, que pela monstruosa invenção do contencioso administrativo, que pelas mais ou menos disfarçadas ditaduras, cuja necessidade ele mesmo cria, que por mil concessões arrancadas à fraqueza ou à condescendência parlamentar, acha grandes facilidades para penetrar na esfera dos outros poderes, deve ir longe na própria esfera. E vai.

Quereis encontrar o governo central? Do berço à cova encontrai-lo por todas as fases da vossa vida, raramente para vos proteger, de contínuo para vos incomodar. Nada, a bem dizer, se move na vida colectiva do povo que não venha dc cima o impulso, ou que pelo menos o governo se não associe a esse impulso. Entrai, por exemplo, no presbitério da primeira aldeia que topardes. Vereis aí um homem enchendo a pia de água benta, apagando ou acendendo as velas, arrumando os ciriais. É o governo central. O sacristão, exornado com o título pomposo de tesoureiro, e seu funcionário; é a mão dele estendida até ao gavetão das vestimentas. Essa personagem tem carta pela secretaria de Estado.

Isto é impossível que, seja racional, sensato. Essa imensa tutela de milhões de homens por seis ou sete homens é forçosamente absurda. Deve haver um dia em que a sociedade, como os indivíduos, chegue à maioridade.

Não receeis que a descentralização seja a desagregação. O governo central há-de e deve ter sempre uma acção poderosa na administração pública; há-de e deve cingi-la; mas cumpre restringir-lhe a esfera dentro de justos limites, e os seus justos limites são aqueles em que a razão pública e as demonstrações da experiência provarem que a sua acção é inevitável. O âmbito desta não deve dilatar-se mais.

A centralização, na cópia portuguesa, como hoje existe e como a sofremos, é o fideicomisso legado pelo absolutismo aos governos representativos, mas enriquecido, exagerado; é, desculpai-me a frase, o absolutismo liberal. A diferença está nisto: dantes os frutos que dá o predomínio da centralização supunha-se colhê-los um homem chamado rei: hoje colhem-nos seis ou sete homens chamados ministros. Dantes os cortesãos repartiam entre si esses frutos, e diziam ao rei que tudo era dele e para ele: hoje os ministros reservam-nos para si ou distribuem-nos pelos que lhes servem de voz, de braços, de mãos; pelo partido que os defende, e dizem depois que tudo é do país, pelo país, e para o país. E não mentem. O país de que falam é o seu país nominal; é a sua clientela, o seu funcionalismo; é o próprio governo; é a tradução moderna da frase de Luís XIV -l'état c'est moi, menos a sinceridade.

Não acuso alguém em particular; descrevo um facto geral; não sirvo, nem combate, nenhum partido: pago-vos com a franqueza um pouco rude da minha linguagem a vossa benevolência. Se acusasse, acusava-me também a mim, e talvez a vós. Ninguém está acima das paixões, dos preconceitos, das fórmulas, da índole da sua época. Nem sequer, e muito é, os estadistas o estão, se me é concedido avaliar essas altas capacidades. A carne é fraca. Sejam quais forem as nossas aspirações, as nossas teorias, e, se quiserem, os nossos sonhos quanto ao futuro, vivemos no presente, e quando não nos abstemos da política, enfileiramo-nos nos partidos, às vezes, até, sem o querermos, sem o sabermos. Como tive a honra de vos fazer notar, a questão da liberdade na sua plenitude e na sua existência real está fora ou, antes, acima dos partidos. Se, conforme creio, a eleição na qual quisestes que eu tivesse uma parte honorífica manifesta as vossas propensões para manter o ministério actual, não se deduz do que vos digo a necessidade de mostrar propensões contrárias. Por ora não se trata senão de adoptar um princípio, uma regra, cujas consequências verdadeiramente importantes virão mais tarde. Não importa, em relação a essas consequências, que escolhais neste ou naquele partido: o que importa é que escolhais de entre vós; o que importa é que os círculos rurais não obriguem algum homem grande a consumir dez minutos em procurar no mapa do reino a situação relativa do distrito que representa, e muitas horas em soletrar os nomes romanos, góticos, mouriscos, bárbaros, que nesse mapa designam rios, montes, lugarejos, aldeias, freguesias, concelhos, em que nunca ouviu falar. Pelos recostos das vossas pitorescas montanhas, pelos vossos vales frondosos, pelas quintas e granjas mais remotas, no campo ou nas povoações, deve habitar algum amigo do ministério que mereça os vossos votos. Dai-lhos, se entendeis que os homens que estão no poder são menos maus do que os seus adversários.

Não me consentindo a brevidade do tempo e a urgência de outras ocupações expor-vos todos os motivos por que dou tanta importância à doutrina eleitoral que submeto à vossa consideração, não tenho direito a insistir em que a sigais com a inabalável firmeza com que intimamente creio que a deveríeis seguir. Nessa hipótese, se vos apresentarem candidaturas de indivíduos estranhos ao vosso círculo, cujo carácter não possais avaliar por vós mesmos, consenti em que vos lembre um arbítrio para não serdes ludibriados. Consultai aqueles que pessoalmente os conhecerem, mas só aqueles que, pagando tributos, e não desfrutando-os, viverem no meio de vós, há longos anos, do produto do seu trabalho ou da sua propriedade, e que gozarem de sólida reputação de inteligência e de probidade. Como homens de bem, e como tendo interesses análogos aos vossos e confundidos com os vossos, eles não podem enganar-vos. Escolhei o que eles escolherem; rejeitai o que eles rejeitarem. Vença qual partido vencer, tereis ao menos um procurador honesto; porque todos os partidos têm no seu seio gente honrada. Escusado é dizer-vos o que haveis de ganhar.

Depois, quando alguém, que acidentalmente se ache no meio de vós, sem casa, sem bens, sem família, sem indústria destinada a aumentar com vantagem própria a riqueza comum, e só porque o seu talher na mesa do tributo ficou posto para esse lado, se mostrar .demasiado solícito em nobilitar o vosso voto pela escolha de algum célebre estadista, em que talvez nunca ouvistes falar, ou em livrar-vos de elegerdes algum mau cidadão, cujas malfeitorias escutais da sua boca pela primeira vez, voltai-lhe as costas. Padre, militar, magistrado, funcionário civil, seja quem for, esse homem que tanto se agita, aflito pela vossa honra eleitoral, pelos vossos acertos ou desacertos políticos, pode ser um partidário ardente e desinteressado; mas é mais provável que seja um hipócrita, um miserável, que já tenha na algibeira o preço do vosso ludíbrio, ou que, por serviços abjectos, espere obter, ou dos que são governo, ou dos que querem fazer o imenso sacrifício de o serem, a realização de ambições que a consciência lhe não legitima, e acerca das quais só podeis saber uma coisa: é que as haveis de pagar.

Permiti-me, senhores eleitores, que termine esta carta, já demasiado extensa, reiterando-vos os protestos da minha gratidão pela vossa bondade para comigo, e assegurando-os que, se me falece ambição para aceitar os vossos votos contradizendo as minhas opiniões, sobeja-me avareza para buscar não perder jamais um ceitil da vossa estima.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Sobre a Ética hoje




Dê cada um ao mundo aquilo que lhe diz faltar, e talvez este se regenere
Agostinho da Silva


Fala-se muito nos dias de hoje em Ética. É preciso ética nisto, é preciso ética para aquilo, é preciso “eticizar” a sociedade, é preciso ética na política e nos negócios. Noutras palavras, pretende-se moralizar a sociedade, assegurando o cumprimento de certos critérios normativos, certas regras que se pretendem universais e que traduzirão um maior respeito das instituições em geral e das pessoas em particular em relação ao outro. Esse outro somos cada um de nós e a nossa circunstância, como diria O. Gasset, circunstância de não sermos apenas indivíduos, mas de sermos homens aos quais se atribui uma dignidade inerente e inalienável. Dignidade que nos dá o direito de pedir contas e o dever de as prestar, seja a cada um dos outros homens, seja às instituições políticas, económicas, culturais ou científicas.

Noutras palavras, ética pressupõe relação e reciprocidade, seja entre o indivíduo e a sociedade, seja entre o indivíduo e outro indivíduo, seja até entre o indivíduo e si mesmo. Fala-se hoje menos numa ética de virtude individual no sentido de um código moral de acção que permita uma “vida boa” no sentido aristotélico, porque o conceito de indivíduo da sociedade ocidental dá-lhe amplos poderes no que concerne à sua busca de uma felicidade própria, pessoal e intransmissível. A perda de influência da esfera do religioso em relação ao secular, e a ascensão dos existencialismos vários que atribuem ao homem um papel de “criador de si mesmo” ou, em termos nietzcheanos, de “fundador de novos valores”, conduziram paulatinamente a um relativismo, não já de carácter colectivo, mas individual e individualista. O culto dos ídolos antigos, dos deuses e rituais, deu lugar ao culto do indivíduo. Os que ouvem falar em “virtude” logo fazem soar o alarme da seca e bafienta moral dos religiosos. “Justo-meio” e “moderação” parecem ser entraves à felicidade dos cultores de um hedonismo militante que tudo justifica. E o que não se vai buscar aos livros de filosofia, também ela tida como bafienta e sem qualquer utilidade, vai-se beber sofregamente às novas “bíblias” da auto-ajuda, onde os novos profetas da felicidade fácil elaboram filosofias de “pronto-a-vestir”.

Assim, a Ética é hoje uma necessidade de valorização da boa-fé como valor contratual. Em termos democráticos, a sociedade consiste numa espécie de contrato elaborado entre indivíduos, sectores, instituições. Como o próprio nome indica, é uma sociedade. Em termos abstractos, cada um de nós aderiu a essa sociedade no estatuto de homem livre, ou seja, por escolha e vontade própria. Em termos práticos não é bem assim porque não escolhemos propriamente nascer neste ou naquele contexto, mas o facto de vivermos num contexto democrático dá-nos um outro estatuto de responsabilização perante as escolhas comuns que não teríamos numa sociedade totalitária ou ditatorial. Em vez de um contrato elaborado por todos numa espécie de situação primordial na qual nenhum dos indivíduos conheceria de antemão o seu estatuto na sociedade (Rawls), viver numa sociedade democrática é antes um constante renovar desse contrato. Não consentimos apenas uma vez dela fazer parte, mas várias, nos vários momentos em que, seja por meios de representação, seja por vias directas, fazemos ouvir a nossa voz na construção da chamada coisa pública. Ao legitimarmos através do voto um determinado governo, e ao elaborarmos legislação por meio dos nossos representantes eleitos numa assembleia ou num congresso; ao sermos chamados, como representantes do poder local ou nacional; ao cumprirmos a lei em vez de lhe desobedecermos através da desobediência civil – porque em democracia podemos desobedecer às leis desde que estas estejam mal feitas, ou em desacordo com os princípios gerais da constituição ou até da Declaração Universal dos Direitos do Homem – recorrendo aos tribunais para provar a nossa pretensão. No mundo globalizado cujas fronteiras não são mais factores de limitação mas portas abertas para outras culturas e modos de vida, o facto de escolhermos continuar a residir no nosso país, ou até de escolhermos viver num outro país, é já uma forma de contratualização democrática.

Assim, cada sector da sociedade deve prestar contas aos outros sectores quando não cumprem a sua parte contratual. Os políticos às populações porque se comprometem a gerirem o que é público tendo em conta o interesse público, e não os seus interesses particulares. Em troca, recebem a legitimidade do voto. As instâncias económicas públicas e privadas também devem prestar contas, as primeiras porque fazem uso do que é público com fins eminentemente públicos, e as segundas porque não podem fazer colidir os seus interesses privados – legítimos aliás – com o interesse público. Igualmente importante, os indivíduos têm de prestar contas aos demais sectores da sociedade se fazem colidir o seu interesse privado, individual, com o interesse privado, individual de outro indivíduo. Por indivíduo entendo aquilo que se chama em termos do Direito de pessoa individual e de pessoa colectiva. À estrutura que regula tudo isto segundo peso e medida, e que funciona como cláusula máxima deste contrato social sempre renovado, se chama Lei.

O anseio pela ética é então o anseio pelo cumprimento da Lei? Também, mas não só. Por um lado, se um determinado sector da sociedade, precisamente aquele que tem por missão vigiar o cumprimento da lei, não cumpre a sua parte do contrato, há aqui uma crise de boa-fé. Não só é eticamente errado que haja quem não cumpra a lei, como é errado que aquele a quem democraticamente é outorgado o dever de fiscalizar o cumprimento da lei em nome da sociedade, não seja capaz de o fazer ou o faça tendo em conta interesses particulares. Contudo, não ser capaz de o fazer é uma questão política pois quem tem o dever de reformar a justiça e de lhe dar meios para agir bem e rápido são as tutelas políticas. O erro e a falta de boa-fé estão, portanto, do lado dos políticos. Se, a título individual ou colectivo, os agentes judiciais se deixam corromper ou não estão interessados numa melhor justiça, a falta de boa-fé está do lado deles. O facto de um determinado sector da sociedade estar incumbido de fiscalizar o cumprimento da lei, não iliba os outros sectores de terem o conhecimento da lei. Perante um tribunal ninguém pode alegar o desconhecimento da lei para justificar os seus actos. Assim, há um comprometimento ético de todos no cumprimento da lei, sem excepção.

O que acontece na maioria das vezes é que o senso comum que a todos parece pertencer - sublinho parece - iliba o próprio em detrimento do outro. Pede-se ética para os outros, pede-se que eles prestem contas e justifiquem os seus actos sem qualquer contemplação. Já para nós próprios existe toda e qualquer justificação, e raramente nos sentimos no direito de prestar contas seja a quem for. A nossa autonomia radicada na nossa liberdade e dignidade como indivíduos pressupõe um comprometimento ético de boa-fé para com o outro. Pressupõe reciprocidade e não unilateralidade neste compromisso. Pressupõe uma mesma proporção de direitos e de deveres para todos sem excepção. Pressupõe, não só um compromisso com a exterioridade, como o outro ou os outros outorgantes do nosso contrato. É também um compromisso connosco mesmos, com a nossa interioridade. Alguns diriam, com a nossa consciência. Sim, porque mais difícil do que a consciência dos direitos - consciência viva e sempre instigadora da acção e da revolta – é a consciência dos deveres. Tendemos a dogmatizar os nossos direitos, fazendo deles axiomas imutáveis, e a pôr em questão todos e cada um dos nossos deveres como se tratassem de hóspedes indesejados da nossa consciência.

quinta-feira, novembro 04, 2010

Homo Politicus



O que significa dizer que o homem é um animal político? O que define o âmbito do político? Não me parece possível responder à primeira pergunta sem responder à última. Afirmar que o homem é, em si mesmo, ou seja, que contêm na sua humanidade uma dimensão política, pressupõe um entendimento claro do que é isso de política.

Aristóteles foi o primeiro a afirmar peremptoriamente a natureza política do homem. Para o filósofo, o homem procura naturalmente a companhia dos outros homens, organiza-se, hierarquiza-se, é um animal gregário, social. Na busca dos seus propósitos individuais ou colectivos, o homem insere-se em comunidades, respeita hierarquias, luta pelo poder e domínio dos outros e das coisas, engendra teorias abstractas de organização dos indivíduos, faz planos e elabora estratégias.

Contudo, esta característica não é exclusiva do homem. Outras espécies animais existem que são políticas na medida em que se organizam, se submetem a rígidas hierarquias, respondem a regras não-escritas de sociabilização, poder e domínio que as tornam, em muitos aspectos, muito mais eficazes que qualquer tipo de organização política humana que exista ou tenha existido no passado. Lembro-me imediatamente das formigas e das abelhas. O que torna o homem diferente? Será o homem mais político que outras espécies animais, ou estamos a falar de diferentes tipos de politicidade?

O homem, como animal que é, não pode deixar de responder aos mesmos instintos de organização, sociabilização e hierarquização que as outras espécies animais. Não pode, mas pode. O homem, quando nasce, nasce inserido num contexto. Uma família, um clã, uma tribo, uma civilização. O seu processo de sociabilização, organização e hierarquização parte do particular para o geral, do núcleo familiar para a comunidade mais chegada, da comunidade mais chegada para a cidade, da cidade para a nação. Talvez isto não se passe exactamente assim, mas parece-me que existe uma certa verdade nesta linha de raciocínio, pelo que vale a pena pôr a coisa nestes termos, ainda que de uma forma a modos que caricatural.

O homem parece ser capaz de romper o âmbito da mera tribalidade, da simplicidade dos afectos, da comunidade isolada, para se abrir ao outro, para lançar pontes e abrir-se a novas possibilidades de organização que lhe permitem responder a outras necessidades que não a da mera sobrevivência. É possível que esta perspectiva padeça de um certo optimismo forçado, mas ao longo da história humana podemos constatar o modo como as pequenas comunidades se foram progressivamente abrindo, ligando e religando, crescendo e expandindo, anexando o diferente e o diverso. Da pequena tribo ao clã, do clã à pequena vila, da pequena vila à cidade, da cidade à cidade-estado, da cidade-estado à nação, da nação à confederação de nações. Obviamente que este processo não foi nem é linear, e, sublinhe-se, na maioria das vezes muito pouco pacífico. A guerra é e foi sempre parte do processo, não uma anomalia.

O conflito serve determinados propósitos, também eles, políticos. A guerra sempre foi um meio de unir a tribo, o clã, a nação. Ela sedimenta e reforça a unidade no seio da diversidade, e determina também, em larga medida, o modo como se organiza a comunidade em termos políticos. A própria hierarquia de valores das comunidades guerreiras foi, em muitos aspectos, determinada pela dimensão guerreira da mesma, premiando a valentia, a bravura, a coragem e a lealdade, em detrimento da cobardia e da deslealdade, vistos como pecados gravíssimos dignos de repulsa. Não é por acaso que os primeiros reis são, antes de mais, grandes generais, e que, numa primeira fase, a hierarquia política se confunda com a hierarquia militar. A legitimidade do chefe reside no seu génio guerreiro, na sua liderança e destreza militar. Aspirar a um lugar na hierarquia da comunidade implica dar provas de que se é corajoso, valente e bom guerreiro.

O político, no humano, manifesta-se primordialmente pela expressão da necessidade de auto-preservação e sobrevivência. Este é eminentemente territorial, proteccionista e baseado em afectos simples que se confundem praticamente com os afectos familiares ou de clã. O mundo exterior é geralmente hostil e imprevisível, cheio de armadilhas e perigos, pelo que é importante reforçar as relações de solidariedade entre os diversos elementos da comunidade. O outro é visto quase sempre como uma ameaça à integridade do grupo. A diferença é perigosamente subversiva, e o homem do paleolítico não pode correr o risco de se ver subitamente arredado da protecção da tribo ou do clã.

Num estado meramente tribal, o homem pouco se diferencia dos primatas superiores, como o chimpanzé ou o gorila. Partilhamos muitos aspectos do processo de sociabilização com estas duas espécies, os nossos primos em termos evolutivos. Porém, enquanto os chimpanzés e os gorilas se organizam basicamente do mesmo modo há centenas de milhares de anos, o político no homem assume um carácter evolutivo, ainda que existam algumas excepções a que a antropologia política chama de sociedades não-históricas, ou de história repetitiva. Desde os aborígenes da Austrália, aos Masai em África, passando pelas tribos da Amazónia até os esquimós do Ártico, os exemplos são diversos.

Há, no entanto, um aspecto de fundo que faz toda a diferença e que reside no critério de adaptabilidade. Os chimpanzés, mesmo que fossem pressionados pela civilização a tornarem-se civilizados, ou mesmo que nascessem num contexto democrático, jamais conseguiriam adaptar-se a um novo modelo político e serem nele agentes participativos e influentes. O mesmo não acontece com os Masai ou com as tribos amazónicas. É verdade que a maioria das sociedades ditas não-históricas oferecem geralmente uma enorme resistência à modernidade, recusando por motivos de cultura e tradição a mudança ou a integração em modelos mais vastos de organização política. Porém, não está escrito nos seus genes que tenha de ser assim. Um Masai nascido em Nova Iorque, desde que devidamente integrado, adaptar-se-á a um modelo político em tudo diverso do dos seus antepassados. Diversas tribos africanas renderam-se, por exemplo, ao uso da tecnologia para executarem as suas tarefas tradicionais, e mesmo à internet e ao telemóvel como modo de comunicação. Assim, a excepção confirma a regra no caso do homem. O político no homem não é apenas necessidade, mas antes possibilidade. Está aberto à contingência, e não limitado por um determinado património genético.

É precisamente esta abertura à contingência que nos permite questionar o político. A organização das comunidades humanas é dinâmica e, portanto, muito difícil de determinar e delimitar. Verdadeiramente, não existe uma ordem estabelecida, final e definitiva. O chamado status quo está continuamente em crise e exposto à subversão. O político está mais próximo de um devir do que de uma essência explicável e compreensível. A pretensão da antropologia política em desvendar os princípios que subjazem a toda e qualquer forma de organização política, e desta forma elaborar uma espécie de paradigma categórico do político, talvez seja, nesta perspectiva, demasiado ambiciosa, irrealista e redutora. O mesmo se poderá dizer do materialismo histórico descendente directo do hegelianismo. A pretensão de fazer da história uma ciência pura, positiva e previsível, com leis bem definidas de tese, antítese e síntese, de contínua superação de contradições latentes, foi já desmentida pela própria sucessão dos factos históricos.

Se não é então possível definir o político claramente, acredito ser possível pelo menos uma aproximação. O político é dinâmico, subversivo, promotor ao mesmo tempo da ordem e do caos. O político é só, em parte, acção concreta de instituições políticas. Na verdade, a política é apenas a ponta do iceberg do político. Nesta dinâmica, o político latente na acção do indivíduo, do colectivo, da sociedade civil, e dos diversos sectores – também eles dinâmicos -, em conjunto com o fervilhar ideológico mais ou menos definido, só em muito pequena percentagem logra vencer o caos do conflito de interesses para se cristalizar em instituições e regimes, ou seja, para se tornar acção política promotora de uma determinada ordem e de um status quo. O equilíbrio desta ordem é frágil, e nem a imposição totalitária – conservadora por natureza – sobrevive tempo suficiente para domesticar a dinâmica do político. Pelo contrário, uma dinâmica totalitária, pela sua natureza conservadora, imediatamente provoca uma clivagem entre as instituições políticas e o resto da sociedade naturalmente dinâmica e aberta. Em última análise, empurra as forças criadoras para a clandestinidade, reforçando e alimentando o seu poder subversivo, a pressão libertadora e emancipadora, conduzindo, geralmente, a fenómenos revolucionários mais ou menos violentos.

Assim, no homem, o ser político é também aspiração e sonho. É projecto, planificação e ideal. Se, como já vimos, existe a dimensão ordenadora e conservadora do político, normalmente cristalizada em órgãos de acção política concreta, a outra face da moeda é a dimensão subversiva e desorganizadora, ou caótica, não cristalizada e sustentada por uma hierarquia de valores.

quinta-feira, outubro 28, 2010

Novo Blog

O meu último artigo sobre a refundação da Res Pública deu-me uma ideia. Criei um novo blog que procura isso mesmo, contribuir para pensarmos o actual regime político, o significado da actual crise, e o que fazer para sairmos disto.

É preciso refundar a república... ou então, a solução passa por mudarmos de bandeira. Que tal esta?





http://refundararespublica.blogspot.com

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quinta-feira, outubro 21, 2010

Refundar o Regime - o divórcio que mata a democracia



Quando as pessoas já não se revêem nem se sentem representadas por uma determinada classe política, talvez esteja na altura de mudar. Os partidos, como acontece com as pessoas e com tudo na vida, têm uma história, uma razão de existir que radica num determinado contexto social, político, enfim, epocal. A crise das democracias, hoje, nomeadamente no nosso país, tem a ver com este progressivo, lento mas corrosivo, divorciar entre as populações representadas e as classes representativas; entre os políticos e as suas estruturas, e a dita sociedade civil.

As democracias mais frescas e participadas são, quase sempre, aquelas onde poder político emana directamente dos sectores activos da sociedade civil. Aqueles que formaram as fileiras dos primeiros aparelhos partidários estavam longe de ser aquilo que hoje se chama de político profissional. Eram antes personalidades distintas, industriais, empresários, professores, proprietários rurais, filósofos, escritores, que souberam, num determinado contexto social e político, fundir ideias e actos, pensar e agir de modo a fazer história, a fundar nações e regimes. Foi assim nos EUA, no conturbado mas rico período da sua fundação. Foi assim em Portugal, no conturbado mas rico período do vintismo, do setembrismo, ambos manifestações de um liberalismo que haveria de dar mote à fundação de um frágil regime republicano. Se quisermos ir bem mais atrás, foi assim na Grécia Antiga, quando os cidadãos eram chamados a cumprir a sua função no governo da cidade, para além da sua função ou profissão comum. As forças vivas da democracia ou, se quiserem, da república, estão nos diversos sectores que constituem a própria sociedade, sejam eles económicos-produtivos, culturais, educacionais, sociais, de baixos ou altos rendimentos, instruídos ou menos instruídos, científicos, etc.

Não é admissível que numas eleições, como aconteceu há um ano com as legislativas, se assista a uma percentagem de abstenção na ordem dos 60%! Se por um lado se deve imputar a culpa aos políticos, por outro não se deve deixar de imputá-la às pessoas que se demitem de querer fazer alguma coisa para alterar o estado de coisas. Hoje, como no passado, é urgente que novas forças políticas venham à luz do dia, emanadas das forças vivas da sociedade, renovando a aliança entre governantes e governados, expressão de uma só sociedade que, em última análise, se governa a si própria. Não se pede que se eliminem os actuais partidos, mas que estes deixem de ser tão abertos ao clientelismo e à mediocridade, e deixem de dar cobertura aos carreiristas para abrirem, de par em par, as portas à sociedade, ao mérito dos que sabem porque fazem, e aos que fazem por que sabem. Do que precisamos também é de novos partidos, novos movimentos de cidadãos, novas associações civis que facilitem a participação anónima dos cidadãos comuns, que sejam atalho limpo e largo que facilite o intercâmbio entre o cidadão e o decisor político. É preciso religar o poder às pessoas, procedendo a reformas sérias do sistema eleitoral que façam emanar os representantes políticos das regiões que estes melhor conhecem, porque nelas nasceram e viveram, ou porque nelas trabalham. Isto não é possível num país em que os deputados à AR são escolhidos no interior dos aparelhos partidários mediante afinidades políticas – quando não por simples amizades e troca de favores –, colocados em listas representando círculos eleitorais dos quais nada conhecem, e depois eleitos a reboque de um partido. Isto mina a confiança na política e no sistema. É deste tipo de coisas que o país tem de se livrar rapidamente. É preciso refundar a república. A questão é: teremos gente à altura para assumir compromissos neste sentido? Temos, claro que sim. E nenhum deles é político profissional.

sexta-feira, outubro 08, 2010

Vídeo sobre a vida dos deputados na Suécia



É com exemplos destes que o povo acorda. Ou talvez não... Curiosamente, é no momento em que Portugal celebra os 100 anos da implantação da República que uma Monarquia (a Sueca) dá um verdadeiro exemplo de respeito e de abnegação em prol da coisa pública...

A propósito: já enviei este vídeo aos seis grupos parlamentares da nossa AR.

terça-feira, outubro 05, 2010

100 anos a aprofundar a Coisa Pública em Portugal




República vem do latim Res Publica (coisa pública). Há 100 anos, alguns aventureiros influenciados largamente pelo exemplo da Revolução Francesa, Americana, e pelos ideais maçónicos, e apoiados por elementos do exército regular e por milícias populares, empurraram o último dos representantes da Casa de Bragança para um exílio sem retorno. Pelas 9 horas da manhã do dia 5 de Outubro, a República era proclamada da varanda dos Paços do Concelho, em Lisboa, pela voz de José Relvas, um dos mais eminentes elementos do directório republicano.

O ideal da república não é novo. Podemos afirmar até, com alguma segurança e acuidade, que não existe apenas uma república, mais várias. A primeira das repúblicas – ou pelo menos a primeira propriamente designada como tal – foi a Romana, implantada depois da deposição do rei romano Tarquínio O Soberbo. A partir desse momento até à autoproclamação de Júlio César com Imperador, Roma foi uma república na medida em que foi governada por Cônsules e por um órgão novo – o Senado. Verdadeiramente, o Senado pretendia representar o populum (o povo), e o Cônsul não era mais do que o primo inter pares, ou seja, o primeiro entre iguais, sem lhe estar reservado qualquer privilégio de nascimento ou legitimação divina. Além disso, o cargo de Cônsul estava aberto a plebeus, ou seja, aquilo a que hoje podemos de chamar de civis.

Antes dos romanos, já os gregos ensaiaram tanto a nível teórico como prático o republicanismo. A democracia (demos kratia ou governo do povo) foi verdadeiramente a primeira expressão de um governo da cidade baseado na representatividade dos cidadãos. Qualquer cidadão do sexo masculino tinha direito à palavra nas Assembleias, bem como o direito de voto. Sólon, no séc. VI, aristocrata a quem foram dados plenos poderes pelos notáveis de Atenas depois de uma série de convulsões políticas, pôs em prática uma série de reformas legislativas e institucionais que conduziriam à democracia, nomeadamente a divisão da sociedade em classes cujo critério de hierarquização consistia no rendimento. Assim, os mais ricos tinham mais poder e representatividade no sistema, mas mesmo os cidadãos mais pobres podiam assistir às assembleias e usar da palavra. Para esse efeito, Sólon criou um conselho constituído por quatrocentos cidadãos, nos quais cada uma das quatro tribos da Atenas estava representada. Cada tribo elegia cem cidadãos da classe dita intermédia para a representar no Conselho. Foi ainda fundado um tribunal denominado Tribunal dos Heliatas aberto a todos os cidadãos de todas as classes – menos obviamente aos escravos -. A nível teórico, a filosofia grega veio abrir caminhos novos para a compreensão do político, e para o aprofundar de princípios demo/republicanos. Desde a República de Platão( Politeia no original grego), à Política de Aristóteles. No primeiro, o regime proposto subvertia a democracia, entendida por Platão como um regime perigoso e que facilmente degeneraria em tirania, pelo que, o melhor dos regimes era a Aristo kratia (governo dos melhores). Neste tipo de governo, a hierarquia era rígida e não existia mobilidade social. O aspecto novo e mais interessante consiste no governo dos filósofos, considerados os mais aptos para governar na medida em que são mais sábios e estão mais próximos da verdade. No caso de Aristóteles, a situação inverte-se. Ele queria um regime para homens, e não para deuses. Nessa medida, Aristóteles foi o primeiro a propor uma forma de governo com instituições muito próximas das ditas republicanas actuais, nomeadamente no que concerne à constituição de um senado representativo de todos os sectores da sociedade, bem como relativamente à separação de poderes. Roma haveria de concretizar muito daquilo que foi proposto por Aristóteles, bem como 2300 anos mais tarde os EUA, a França, a Inglaterra, e, por arrasto, toda a Europa.

Portugal, no ínicio do séc. XX, era um país de analfabetos e de elites estabelecidas e inertes. A revolução industrial teimava em chegar, e o fraco e incipiente sector primário era, a par das remessas dos emigrantes nas colónias, o motor da economia. Portugal era basicamente um país importador que gastava mais do que aquilo que tinha, e que se endividava continuamente, muito à semelhança do que se passa hoje. As relações com os britânicos, sobretudo depois da humilhação do ultimato de 1890, deteriorou-se largamente, e o exemplo em todos os aspectos políticos, sociais e culturais, era o da França republicana. Vigorava no nosso país uma monarquia constitucional desde a revolução vintista de 1820, que culminou nas Cortes Constituintes de 1822. O constitucionalismo tinha vindo desde essa altura a aprofundar-se assumindo um carácter cada vez mais parlamentarista. A constituição de 1822 era, na época, das mais progressistas da Europa, consagrando direitos e liberdades, instituindo as Cortes eleitas, consagrando a separação dos poderes judicial, executivo e legislativo, retirando privilégios à nobreza e ao clero, afirmando a legitimidade real como emanação da vontade da Nação, e não fruto de direito divino, e, sobretudo, a igualdade de todos os cidadãos – incluindo o Rei – perante a Lei. Na teoria e, em muitos aspectos também na prática, a monarquia constitucional portuguesa era já republicana. Uma monarquia, no sentido estrito, é o governo de um só (mono arkia). Nenhuma monarquia constitucional dos nossos dias é, em último análise, uma monarquia no sentido estrito. Será, no máximo, como diz um autor francês, uma monarquia rodeada de instituições republicanas. A novidade está, em larga medida, na substituição de um chefe de estado cuja legitimidade é hereditária, por um chefe de estado cuja legitimidade resulta do voto popular directo ou indirecto, e que não possui qualquer privilégio adquirido por nascimento. É interessante verificar o seguinte: países que assumiram progressivamente um regime de carácter parlamentarista, associado a uma sociedade civil cada vez mais forte e participativa, foram progressivamente esvaziando o papel do chefe de estado em detrimento do poder do parlamento. Isso aconteceu na Inglaterra e, em larga medida, em países como a Dinamarca ou a Suécia. Nos EUA, apesar do poder do presidente, este nada pode contra a vontade do Congresso e do Senado. Alguns destes países, nomeadamente a Inglaterra, esvaziaram o poder do rei e lograram criar um equilíbrio de forças que dispensou, em larga medida, o papel do mediador, ou seja, de um chefe de estado. Portugal, ao destruir o papel do moderador (o rei) e ao lançar-se num parlamentarismo cerrado e imaturo, conduziu a I República ao fracasso. Ainda que estivesse prevista a existência de um presidente da república, este tinha poucos ou nenhuns poderes, não lhe sendo sequer possível dissolver o parlamento, na medida em que a legitimidade daquele emanava deste. Ora, um regime republicano em Portugal não poderia dispensar o papel do mediador, ou seja, do chefe de Estado. Por isso, temos hoje um regime republicano de cariz semi-presidencialista.

Podemos afirmar que o projecto inicial da I Republica, baseado num parlamentarismo exacerbado, fracassou. Em nada melhorou o estado da nação e conduziu, em última análise, a uma ditadura (como curiosamente Platão prevê na Republica). É certo que existiram conquistas importantes, sobretudo no progresso das mentalidades e no reforço do poder civil em detrimento do poder das elites, da Igreja ou dos militares. Contudo, não teria o aprofundamento do liberalismo vintista e setembrista conduzido ao mesmo mais tarde ou mais cedo? Ou nada mudaria?

Desde a revolução americana que a expressão governo do povo, para o povo se tornou paradigmática da essência de um regime voltado à coisa pública. Portugal, mercê das suas fragilidades, da sua iliteracia, da inoperância de uma quase inexistente sociedade civil, não teve, na altura certa, base de apoio suficiente para sustentar um parlamentarismo sério e consistente. A verdadeira república, aquela a que todos aspiramos, é aquela na qual os cidadãos, através da sua participação activa, interessada e competente, tornem desnecessárias e obsoletas certas instituições de governo e controlo. Um Estado forte, não é um Estado de instituições fortes. É um Estado de cidadãos fortes, instruídos, autónomos e interessados. Só assim existe democracia; só assim há republica. Um Estado está doente quando as suas instituições cristalizam, e quando as pessoas já não se identificam com elas. Quando um Estado e demais instituições se divorciam das pessoas cuja missão é representar, ou o Estado muda, ou mudam-no as pessoas. Uma vezes mal, outras bem. Enquanto as pessoas, directa ou indirectamente, através da sua acção directa, ou através dos seus representantes eleitos, tiverem uma palavra a dizer na administração da coisa pública, então haverá republica.

quarta-feira, setembro 22, 2010

Mestrado

Caros leitores,

Se por acaso eu estiver um pouco mais ausente deste blog, a explicação é simples. Dei início ao Mestrado em Filosofia no ramo de Ética e Filosofia Política. Pretendo dedicar-me ao máximo e dar o meu melhor, visto que, infelizmente, nos dias que correm a competição é muito grande e não dão o devido valor a quem não tem as devidas "credenciais". Fá-lo-ei com sacrifício, tanto financeiro como físico, mas fá-lo-ei. Trabalhar como eu trabalho, em turnos desgastantes, numa área que nada tem a ver com a minha formação, com um ordenado que é pouco melhor que um ordenado mínimo, não ajuda muito. Ainda assim, pagarei do meu bolso este Mestrado e tentarei conjugar os horários o melhor possível.

No país das reformas milionárias e dos putos de 20 anos jogadores de futebol a auferirem 15 mil euros por mês, é fácil denotar uma espécie de inversão das prioridades. Só há uma forma de singrar num país assim: ser-se o melhor. Só há uma forma de se encontrar um lugar ao Sol: ser-se competente, humilde e pró-activo. Ou então, o melhor mesmo é encontrar melhores e mais verdes campos lá fora...

Obrigado

segunda-feira, setembro 06, 2010

Aos professores que querem ser mestres




A todos os professores que vão iniciar no mês corrente o ano lectivo 2010/2011, desejo boa sorte, e faço votos para que não percam nem a esperança nem a motivação. Não percam a esperança no futuro da profissão/arte de formar, não se deixem abater pela máquina trituradora da burocracia e dos imperativos económicos que regem e determinam todo estado de coisas a que chegou o sistema de ensino no nosso país. Para quem acredita ainda que o professor é antes de mais um mestre, e não um mero funcionário; para quem acredita ainda que o acto de formar se faz integralmente e com espírito de missão; para quem acredita ainda que é possível ver o aluno como um microcosmos de possibilidades de cidadania, responsabilidade, criatividade e realização; a esses dedico esta mensagem.

A decadência de um sistema de ensino é o prenúncio da decadência de uma sociedade. A escola existe para que haja memória, continuidade e evolução. A escola é o ponto onde converge o conhecimento e a vontade de conhecer. A escola é o ponto de encontro daquele que sabe ou julga saber, com aquele que não sabe mas quer saber, e onde ambos encontram ou inventam meios para conhecer. A escola é isto. Contudo, não é nada disto. O “realismo” cínico das tutelas subverteu tudo isto. Actualmente, a escola assemelha-se mais ao ponto onde convergem aqueles que sabem qualquer coisa acerca de nada, e os que não sabem mas também não querem saber. Não querem, nem precisam, porque ainda assim vão passar sempre, e ainda que não passem logo descobrem que afinal, com muito maior economia de tempo e esforço, podem sorrir para a fotografia com um diploma instantâneo das “Novas Oportunidades”. No meio deste aparato a que chamam “sistema educativo”, desviam-se recursos já por si tão escassos e trabalha-se para as estatísticas. Recursos esses que deveriam servir para premiar mais e melhor quem tem verdadeiro mérito, quem investiga e quem cria, quem ensina e/ou aprende com verdadeiro prazer e dedicação. Não é admissível que se paguem subsídios a tempo e horas para formandos pouco interessados, e se pague mal e a más horas aos bolseiros de licenciatura/doutoramento e aos próprios formadores…

Sinais dos tempos. Este nivelamento por baixo mascarado sob a capa da “democratização do ensino” é, verdadeiramente, sintoma de decadência. Existem cada vez mais professores, e cada vez menos mestres. A formação humana dos agentes educativos já não importa perante a voragem de uma sociedade que idolatra o que é “útil”, que premeia o especialismo em detrimento do universalismo. Já é suficientemente grave que se saiba tudo acerca de uma área e nada acerca do resto. Contudo, há muito quem ensine sem ter sequer o conhecimento mais essencial da sua própria área, quanto mais acerca de tudo o resto… como podem sequer ensiná-lo aos outros? De quem é a culpa?

É a ascensão das massas iletradas. Já lá vai o tempo em que havia uma maioria de analfabetos. Actualmente, a percentagem de analfabetos é vestigial, mas deu lugar a uma percentagem inversamente proporcional de iletrados. A iliteracia é, hoje, a grande nódoa das sociedades modernas, mas isto não importa nada desde que os iletrados não sejam info-excluídos… Não importa que na escola não se ensine, desde que não faltem a banda larga e os quadros electrónicos. Não importa que um aluno, nas vésperas de entrar na faculdade, só tenha lido os resumos – e mal – das obras de leitura obrigatória do secundário. Afinal, para que serve ler livros? De quem é culpa? Primeiro: dos pais que são os primeiros responsáveis pela educação dos filhos; Segundo: dos professores que também foram alunos e que também não leram as obras e que vão também ser pais…; Terceiro: dos responsáveis políticos cujo “realismo” cínico é um mau exemplo para pais, professores e alunos.

No fim de contas, quem vai pagar a factura são as gerações futuras.

sábado, agosto 28, 2010

No limite
são claras as certezas
Aspira-se a um todo inefável
a uma glória que está aí

No limite
a palavra é nada
os versos escrevem-se de actos
a glória chama por ti

No limite
despertas de novo
do sono em que te habituaste a viver
o tempo é nada



o mundo é teu

quinta-feira, agosto 26, 2010

Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento - sucesso ou farsa?



Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento

Acabar com a fome e a pobreza

Igualdade de Género

Saúde Infantil

Saúde Materna

Combater o HIV/SIDA bem como as doenças oportunistas

Atingir a Sustentabilidade Ambiental

Cooperação Global


Concretizar estes oito objectivos é um desafio hercúleo para a comunidade global. Contudo, não é um desafio impossível. Tudo depende de uma enorme dose de boa vontade por parte dos Estados e das organizações internacionais. Neste novo milénio, é necessário que os estados superem diferenças, lancem pontes de cooperação verdadeira, estruturada e duradoura. É preciso encarar a concretização destes oito objectivos com a mesma determinação com que se encararia uma catástrofe global que a todos implicasse. A união é importante, e é já.

Para tal, é necessário esboçar uma parceria global sustentada pelo primado da lei internacional, reforçando desde logo os poderes dos actuais grandes fóruns mundiais, em particular da Organização das Nações Unidas. Curiosamente, a criação de uma parceria global está no último lugar da lista, mas parece-me que deve ser o primeiro a ser, senão concretizado, pelo menos ensaiado. A ordem internacional que existir depois da concretização dos objectivos do milénio será certamente sustentada por um novo modelo de parceria global muito mais forte e duradouro que o actual. Até agora, os estados mais poderosos continuam a encarar o Direito Internacional como um empecilho à concretização dos seus interesses particulares. É preciso começar por perceber que o que se passa é exactamente o oposto. Procurar descredibilizar os fóruns globais, as instituições supranacionais de Direito e cooperação, é pôr em causa o futuro de todos os Estados, e, em última análise, os tais “interesses particulares” de cada estado.

Para já, continuam a existir estados capazes de impor as suas decisões ao resto do mundo através da sua supremacia económica, política e militar. O Conselho de Segurança das Nações Unidas continua a ter como membros permanentes os vencedores da II Guerra Mundial, mesmo que actualmente tal já não faça qualquer sentido visto que pelo menos a China e a Rússia muito têm a explicar em termos de respeito pelos direitos humanos e pela lei internacional. Os EUA também não se livram da nódoa, mas continuam a influenciar as decisões das Nações Unidas desculpando-se com o facto de terem sido os pais fundadores desta organização e também, ainda, os maiores contribuintes. Isto inquina verdadeiramente a legitimidade da Lei Internacional que continua a ter filhos e enteados. Verdadeiramente, a ONU de hoje está muito longe de ser a instituição imparcial, neutral e eficaz, debeladora de conflitos, mediadora e garante da aplicação justa e equitativa do direito internacional de que o mundo precisa. Há grandes reformas a fazer, mas nunca serão levadas a cabo no actual estado de coisas.

Cumprir os oito objectivos do milénio implicaria uma mudança do estado de coisas, uma reforma séria e visível da ONU que a tornasse verdadeiramente eficaz no combate a muitos dos maiores flagelos da Humanidade. Enquanto os países mais poderosos - as tais potências globais com direito de veto no CS - continuarem a vender armas a países governados por ditadores e oligarcas, ou a facções consoante os seus próprios interesses (como acontece em tantos países africanos cujo caso mais gritante talvez seja o do Darfur), então não há esperança de os objectivos serem cumpridos pelo menos nos próximos cinquenta anos. Enquanto factores económicos se sobrepuserem à defesa sem quartel dos direitos humanos; enquanto farmacêuticas poderosas continuarem a lucrar com as doenças de milhares; enquanto a miséria de milhões significar a opulência de centenas; enquanto a hipocrisia for a regra… os objectivos do milénio não passarão de mera retórica, mera descrição de uma utopia possível, mas negada pelo “realismo” dos cínicos que pululam nas maiores instâncias governativas por todo o mundo.

Logo se verá se na cimeira que terá lugar em Nova Iorque de 20 a 22 de Setembro, e que juntará líderes de todo o mundo subscritores desta causa, se fará um balanço verdadeiro do que foi feito, e uma análise do que ainda pode ser feito até 2015, ou se não passará de uma formalidade para cumprir calendário e de um fórum para dizer coisas bonitas acerca da miséria e dos desgraçadinhos deste mundo. Infelizmente, o mais provável é que não passe disso mesmo – uma grande farsa patrocinada por todos nós, cujos actores são aqueles cujo dever consiste em representar-nos e governar-nos o melhor possível de acordo com o mandato que lhes concedemos. Ou talvez não. Talvez a democracia seja também, ela mesma, uma tragicomédia.

segunda-feira, agosto 23, 2010

Era uma vez um jovem licenciado em Filosofia que queria um lugar ao Sol

Era uma vez um jovem estudante de Filosofia. Ele era sonhador, idealista, queria envolver-se, participar na mudança que estava a ter lugar no mundo.

Terminada a sua licenciatura, o jovem foi batendo a diversas portas na esperança de encontrar um trabalho como professor de Filosofia. Tinha sede de ser útil, de pôr em prática as suas capacidades e talentos. Diziam-lhe frequentemente que a com a sua licenciatura dificilmente encontraria o tão desejado “lugar ao sol”. Contudo, ele não desistiu.

Um dia, decidiu voltar a França onde se tinha licenciado para procurar emprego numa qualquer organização internacional. Através de um conhecimento de seu pai, candidatou-se a um lugar na ONU, mais precisamente na UNESCO. Contudo, e ainda que tenha sido mais que brilhante em todas as entrevistas, não ficou. A resposta que lhe deram foi simples e taxativa: “Desculpa, mas nas Nações Unidas não há lugar para a Filosofia.”.

O nosso jovem não se deixou abater. Candidatou-se a uma vaga temporária na ACNUR, a agência para os refugiados das Nações Unidas, e… foi seleccionado.

Esse jovem chamava-se Sérgio Vieira de Mello. Morreu em Bagdade, Iraque, no ano de 2003, depois de 34 anos de serviço exemplar reconhecido internacionalmente na Organização das Nações Unidas.

No seio da organização era já visto por muitos como o futuro Secretário-Geral.



Para quem diz que não há lugar para a filosofia….


sexta-feira, agosto 06, 2010

galáxias a acelerar sem recurso à "matéria negra" - uma hipótese

Ainda que existam milhares de fóruns na internet, páginas e páginas sobre ciência e astronomia, não existe uma única que nos permita propor uma ideia, uma tese, uma intuição. É verdade que somos quase todos leigos, que não temos as bases matemáticas e científicas para apresentar propostas estruturadas. Contudo, as grandes ideias não radicam desse conhecimento formal, mas de intuições que por vezes nos surgem do nada mas que infelizmente não somos capazes de “vestir” de forma a sermos aceites pela comunidade dos entendidos.

Não tendo espaço para tal, faço-o no meu espaço.

Para grande pasmo dos cientistas, as galáxias não estão a “travar” a velocidade da sua expansão. Os teóricos do Big Crunch sempre afirmaram que a gravidade forçaria as galáxias da desacelerar, à semelhança do que acontece quando atirarmos uma bola ao ar e ela começa por subir rapidamente para progressivamente perder velocidade e, por fim, cair.

O que está a acontecer é o contrário. As galáxias não estão a diminuir a velocidade da sua expansão. Elas estão a acelerar. Seria como se atirássemos a bola ao ar e ela, ao invés de diminuir a velocidade e cair, continuasse a subir a uma velocidade crescente até entrar em órbita. Este facto levou os cientistas a proporem novas forças para explicarem este comportamento nada ortodoxo das galáxias. Uma dessas forças consiste na manifestação de um tipo de matéria que não é visível e que, de acordo com os cientistas, constituí mais de 75 por cento de toda a matéria existente no Universo!

Muito se tem falado desta “matéria negra” que nunca ninguém pesou, mediu ou contemplou. A matéria negra é uma espécie de variável necessária para que um determinado modelo teórico faça sentido. É colocada lá e depois testada continuamente. Os cientistas afirmam ter encontrado diversas evidências de que a matéria negra existe. Não se percebe bem como, mas de alguma forma a matéria negra estaria a provocar a aceleração das galáxias, servindo como força opositora à gravidade.

Tenho uma proposta que até certo ponto torna desnecessária a existência da matéria negra no processo de aceleração das galáxias. Vejamos: todas as galáxias possuem um buraco negro no seu centro. Isto é sabido. Eles são alimentados pela matéria existente no centro das galáxias sobretudo remanescente de estrelas mortas, ou de outros buracos negros mais pequenos resultantes de estrelas de maior massa que morreram e se contraíram num corpo de gravidade infinita. Assim, à medida que as galáxias envelhecem os buracos negros aumentam de tamanho. Agora imagine-se um barco a motor. Este possui uma turbina cujo movimento o faz progredir na água. Imagine-se que o buraco negro é a turbina, e o meio no qual este se movimenta é o tecido espacio-temporal que, segundo a relatividade geral, é elástico. Desta forma, posso ser levado a concluir que o que faz as galáxias acelerarem é o aumento do poder dos buracos negros nos seus centros que as faz progredir no tecido espacio-temporal, à semelhança de uma turbina na água.

Contudo, há uma falha nesta minha teoria – penso eu -. Os buracos negros não são propriamente aberturas como a boca de um aspirador. Não há uma sucção unilateral, como um remoinho na água. Temos de vê-los mais como objectos tridimensionais que atraem tudo de todos os lados, como uma bola magnetizada. Se assim for, e se depender só do poder crescente do buraco negro, então a galáxia não tem propriamente uma aceleração linear, “para a frente” como um barco com a sua turbina. No entanto, o buraco negro não está parado! Ele gira continuamente, como um planeta. Ao girar, arrasta consigo o tecido espacio-temporal e todos os objectos que dele fizerem parte.

Se não é um objecto unilateral, pelo menos gira unilateralmente, provocando o movimento giratório da própria galáxia no seu conjunto. É possível que, ao girar a uma velocidade perto da luz, ele provoque uma singularidade que funcione como a tal turbina na água, fazendo a galáxia progredir. É possível até que, numa galáxia de disco como a Via Láctea, o movimento giratório provoque sucessivas ondas gravitacionais no espaço-tempo, como se fossem os braços da tal turbina, impulsionando a galáxia para “a frente”.

Muitos poderão afirmar que não é possível acelerar se o buraco negro aumentar progressivamente a sua massa. Não é verdade, pois a massa da galáxia é, em principio constante. O aumento do tamanho de um buraco negro massivo faz-se em prejuízo da matéria que constitui a própria galáxia.

É apenas uma hipótese.

terça-feira, agosto 03, 2010

Filosofia, Marx e o homem novo




“Já muitos interpretaram o mundo. O importante agora é mudá-lo”. Com esta frase Marx pretendeu selar o seu entendimento do papel da filosofia. A filosofia deveria deixar de ser uma disciplina meramente especulativa, para assumir gradualmente o papel de agente transformador ou, numa expressão mais ao gosto do próprio Marx, de agente revolucionário.

Sou, em certa medida, um marxista por acreditar nisto. O filósofo não deve limitar-se ao mister da especulação racional, ainda que não deva cair no extremo oposto de pretender ser apenas homem de acção. Ele deve sim ser actuante. Não pode ser indiferente ao mundo nem às eventuais consequências – negativas ou positivas – do seu pensar. Porquê? O perigo do homem de acção que toma para si a missão de concretizar a mudança pensada, é o de transfigurar as ideias e os sistemas filosóficos que o precedem em ideologias. O perigo do homem que só reflecte sobre o mundo e não age sobre ele está no progressivo desfasamento do seu pensar em relação à teia do concreto. A filosofia deve tecer-se, não puramente no abstracto, mas urdindo sobre certos pontos de orientação que se fixam no real. De que outra forma pode a filosofia chegar à verdade? Que sistema filosófico pode afirmar estar completo e ser reflexo da totalidade do mundo se abdicar de uma ou outra face da realidade?

Este é o aspecto descritivo da filosofia. Não haverá também um carácter prescritivo? A filosofia deve prescrever sobre os dados descritos, sobre a realidade, ou pode também prescrever mudanças concretas? É tal possível? Interpretar é descrever. Para mudar o mundo, como queria Marx, talvez se deva começar por compreender o que está descrito, reinterpretar teorias e ideias, entender o seu alcance e a sua aplicabilidade. No entanto, mudar o mundo é querer que o mundo se vergue à teoria, que os factos se alinhem de acordo com os trâmites da ideia. Não é isto já um erro? Não tem a realidade um tempo, um ritmo próprio que não se compadece com os ritmos humanos? Estarão todas as interpretações do mundo fechadas e prontas a usar, ou serão antes sistemas abertos à contínua interpretação?

A ciência, irmã e filha da filosofia, procura descrever o mundo, o modo como funciona e se comporta. Ao mesmo tempo procura prescrever, e a isso se chama técnica. A filosofia questiona métodos, põe em causa teorias, procura sentidos e finalidades. A filosofia vai até onde a ciência não pode ir, ao eminentemente humano, ao social, ao político, ao religioso e ao ético. Muitos filósofos, na ânsia de encontrar a vida boa, o sentido para a vida, apressaram-se a descrever uma espécie de natureza humana. Para um Rousseau, a natureza humana consiste numa bondade essencial, comum a toda a humanidade. A sociedade destrói e deturpa esta bondade. Para Kant, a natureza humana é a liberdade, a autonomia racional que permite ao indivíduo viver de acordo com normas universais se este tiver boa vontade e se guiar por imperativos categóricos. Outros afirmam, como Nietzsche, que não existe qualquer natureza humana, mas apenas uma vontade de poder que determina toda a acção do indivíduo. Porque será tão importante compreender a natureza do homem? Porque é sobre uma hipótese acerca da natureza humana que é possível fundar uma ética. É sobre os fundamentos de uma essência universal que é possível prescrever normas, políticas, regras, e até criar futuros possíveis que contemplem projectos de organização humana ditos perfeitos, expurgados dos defeitos das sociedades que tais utopias pretendem ultrapassar em cada momento da História. Esta compreensão da natureza humana permite a fundação de um direito natural, ou seja, um conjunto de normas orientadoras que radicam na natureza essencial do homem, em vez de o oprimirem contrariando a sua natureza. É neste direito natural que radica a Declaração Universal dos Direitos do Homem que hoje subsiste ainda como farol ético e normativo da sociedade dita ocidental. É por natureza um sistema normativo aberto, que permite a pluralidade e a diferença, ainda que seja intransigente em relação a alguns aspectos basilares como o direito à vida e à dignidade. Não procura fundar um homem novo, mas lançar as bases para que o homem se construa a si mesmo, de acordo com a sua liberdade e autonomia.

O erro de Marx talvez tenha sido o de colocar a tónica na interpretação do mundo, e não na interpretação do homem como mundo (microcosmos). O Marxismo pretende que o mundo se divide em classes que se substituem continuamente através de processos dialécticos de luta e superação de umas por outras. A contradição está em gérmen no seio de uma determinada ordem social, mas mais cedo ou mais tarde esta subverte a ordem assumindo um carácter hegemónico sobre as outras classes que, contudo, continuam a subsistir no seio da nova ordem e se adensam em novas contradições. O materialismo marxista pretende que é possível superar todas as contradições instaurando uma ordem perene. Marx bebeu de forma flagrante das teorias hegelianas, adaptando-as aos seus propósitos revolucionários, convertendo o sistema filosófico numa ideologia revolucionária. Transformou a História numa espécie de motor previsível, cujo funcionamento seria refém de regras mecânicas, por leis que poderiam ser inclusive compreendidas através do método científico, à semelhança das leis da gravidade ou da termodinâmica. É possível que tenha também bebido muito deste néctar da bica positivista do séc. XIX.

As contradições existem, mas são quase tantas quantos os seres humanos. Como se veio a verificar, a história é muito mais imprevisível e não se compadece com regimes de cariz científico. Não é possível, tanto quanto compreendemos, criar um homem novo à revelia da autonomia e da liberdade dos indivíduos. Interpretar a natureza do homem é positivo, e abre novas possibilidade ao entendimento de quem somos, de onde viemos, e para onde vamos. É esse o papel da filosofia, da arte, da ciência. Por outro lado, pretender injectar no homem uma nova natureza, criar um homem novo, quase sempre é pretexto para criar indivíduos dóceis e permeáveis a novas formas de controlo e opressão. Para compreender isto, nada como ler um 1984 de George Orwell, ou um Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley.

terça-feira, julho 27, 2010

"Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."


Na edição de hoje do JN deparei-me com a transcrição integral de um texto de José Saramago num pequeno caderno dedicado ao ambiente. Depois de uma breve pesquisa googliana, descobri que esta extraordinária reflexão acerca do mundo económico e social dos nossos tempos foi escrita por Saramago aquando do II Fórum Social na qual o mesmo participou, e onde a leu pela primeira vez. É absolutamente audaz e acutilante a crítica que o Nobel faz à democracia - ou antes à pantomina desta -, e o modo como procura levar-nos a reflectir acerca da lenta transformação que devemos à globalização e à hegemonia do económico e do financeiro. É raro eu transcrever textos de outros autores neste blog, mas este vale mesmo muito a pena.


Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de 400 anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e ação social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há 50 anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aquelas 30 direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há 400 anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização económica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos fatos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros "comissários políticos" do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os de certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.


Alocução de José Saramago no encerramento do II Fórum Social Mundial