Anúncios google

domingo, dezembro 14, 2008

Homem, princípio e meta - Sá Carneiro acena ao futuro



Ontem, fui dar um passeio pelo jardim da Praça Francisco Sá Carneiro. Um passeio com olhos de ver, entenda-se, não um simples passeio como quem leva o cão a fazer as suas necessidades, sem mais nada em mente do que um vazio monumental. Não estava vazio, mas cheio, como aliás estou quase sempre, sem conseguir dar vazão a todas as ideias e sensações que me atravessam minuto a minuto. Li a placa que diz Praça Francisco Sá Carneiro, e logo recordei o homem que morreu a 4 de Dezembro, e cujo mito se adensa a cada ano, a cada crise política. Em épocas de crise, são os homens maiores que emergem da penumbra, como facho de luz, por vezes sinais de uma esperança abortada em algum momento, símbolos de um porvir desejado. São os grandes homens que surgem no nevoeiro, como promessas. Promessas silenciosas, de pedra, de olhar esfíngico voltado para futuros ansiados, ideais de glória e mudança verdadeira, pontos de luz na trama da história do mundo.

Nesse dia fui até ao centro do jardim, onde dois pilares se erguem, como marcos de delfos no centro do mundo. Num dos pilares há um relevo de um homem que acena para um público inexistente, talvez do passado – quem sabe se do futuro? -. Ao lado, pode ler-se uma inscrição da qual só me lembro de um excerto, ...o homem é o nosso princípio e a nossa meta... Ali, naquele silêncio, aquela inscrição parecia ecoar no espaço, como se estivesse fora do tempo numa espécie de limbo de vozes indistintas, palavras de ordem, sangue a ferver. Sá Carneiro acenava esfingicamente, do alto, e eu repetia para mim “o homem é o nosso princípio e a nossa meta”. Saboreei ali mesmo, sozinho, essas palavras. Tentei penetrar no seu significado mais profundo, nas implicações evocadas por um compromisso tão grande como fazer do homem o nosso princípio e a nossa meta. Pensei se tal seria mesmo possível, se a política não será por vezes precisamente o contrário, fazer do homem meio para outros fins que não o próprio homem; usá-lo individualmente ou em massas indistintas, como carne para canhão, com fins obscuros e maléficos. Pensei na responsabilidade e na coragem que devem ser inerentes a um homem que assuma tal compromisso, a força que deve ter para superar todas as incompreensões, todas as chagas que lhe inflingirão no seu calvário pelo homem. Tentei perceber de que homem estava Sá Carneiro a falar. No homem que vemos na rua, que passa ao nosso lado e a quem não dirigimos palavra, símbolo da nossa total indiferença? Na Humanidade como massa disforme e indiferenciada? Em nós mesmos? Perguntei a mim mesmo até onde Sá Carneiro teria conseguido levar esse seu compromisso. Imaginei como seria este país se ele não tivesse morrido naquela noite de dia 4 de Dezembro. Seria muito diferente? Seria ele hoje um político respeitado, admirado por ter cumprido sem falhas o compromisso assumido desde os primeiros dias do PPD/PSD, e até antes disso? Teria sido sempre honesto, sempre recto e firme nas suas convicções? Acho que não consegui obter resposta para nenhuma das minhas questões. Continuo a achar, porém, que palavra e boas intenções não faltam. O que falta num político é coragem. Não é a coragem das batalhas, do sangue, da morte. É uma coragem bem mais subtil – a de nadar contra a maré, mesmo com o risco constante de afogamento. É a coragem ter como horizonte o Homem, ainda que os homens se unam para nos aniquilar. É a coragem de assumir um risco que se sabe ser maior do que a própria vida, sabendo que a glória será sempre póstuma – se sequer existir glória a haver -. Talvez seja para esse público do futuro, audiência póstuma da sua glória ainda não totalmente compreendida, que acena Sá Carneiro. Talvez seja essa a lição que ele nos quer dar: o homem que assume o compromisso da coisa pública tem de agir para o presente mas, acima de tudo, para um futuro que não conhece e que o ultrapassa largamente, muito para além da poeira e do caos de um presente que parece hostil e difícil.

Sem comentários: